terça-feira, 28 de setembro de 2010

As Viagens do Aeliocóptero (pte 2) ou O Cozinheiro

   Já contava um mês que eu entrara no Aeliocóptero e não saíra mais. Não me fazia falta, o mundo de Fora. Eu passava horas na Sala dos Botões, aprendendo a manipulá-la e mudando constantemente nossa rota, sob o comando do Capitão, cujas várias histórias que eu conhecera nas longas tardes, passadas no imenso terraço que eu descobrira, encheriam um livro. Eu também dedicara algum tempo explorando o lugar, à procura de mais cômodos. Além do terraço  de onde eu pude ver que o Aeliocóptero voava batendo duas colossais asas de pano e estrutura metálica que batiam com som de mar – eu descobri um quarto com uma enorme janela, para onde me mudara, e uma sala cheia de poltronas de todas as épocas, cores, formatos e tamanhos.
   Aliás, foi justamente na nessa sala que aconteceu a primeira coisa curiosa em algum tempo – curiosa para os padrões do Aeliocóptero, que nunca foi padrão de normalidade.
Numa tarde fria e chuvosa de mais para cogitar a ideia de ficar no terraço, pensei em voltar à Sala das Poltronas, sempre seca, quente e acolhedora. Enquanto eu experimentava algumas poltronas procurando a mais confortável, percebi que numa parede onde antes houvera uma tapeçaria agora havia uma porta de madeira. Levantei-me num salto e marchei até a porta, que abri impetuosamente.
   Não olhei o que havia atrás da porta antes de transpô-la e foi com grande surpresa que me percebi caindo no escuro. Eu não era capaz de ver qualquer coisa para os lados ou para baixo e lá em cima havia apenas o retângulo luminoso da porta que eu deixara aberta, que ficava cada vez menor e menor e menor.
   Cai durante bem uns cinco minutos e já me acostumava à estranha sensação provocada pela queda quando ela foi dolorosa e ruidosamente interrompida por algo duro. Uma luz se acendeu me fazendo piscar com força e meus olhos lacrimejarem.
   –O que serrr você, minha amiguinho?
   Abri os olhos e a primeira coisa que vi foi a curiosa figura que me falara. Um homenzinho nem alto nem baixo – mas nem por isso menos inho –, inacreditavelmente redondo, ostentando um bigodinho à lá Salvador Dalí e inteiramente vestido de cozinheiro. Assim como aconteceu com o Capitão, essa figura era tão claramente aquilo que era que não deixava dúvidas, e esse era o Cozinheiro, ou melhor, Cheff Cozinheiro. E agora ele me encarava curioso, esticando seu corpo roliço pela imensa mesa onde eu caíra para me ver melhor.
– O-oi... Eu sou... digo, eu ajudo o Capitão, opero a Sala dos Botões... E você, quem é?
– Não perrrguntei o que você faz, perrrguntei o que você serrr. Eu serrr o Cozinheirra! – disse, sorridente – Você já conhecerrr o biblioteca?
E assim, com o braço gorducho do Cozinheiro nos meus ombros, eu fui guiado pelo lugar mais fantástico que eu já vira até então. A luz que inundava os corredores de estantes vinha aparentemente de lugar nenhum e ainda assim estava em todos os lugares iluminando os livros que pareciam se estender até o infinito, nas estantes de madeira de tempos imemoriais cheias de entalhes delicados e minuciosos que por si só contavam histórias incríveis. 
A Biblioteca estava organizada de alguma forma incompreensível que misteriosamente permitia a qualquer um chegar rapidamente à seção que queria e, uma vez na seção correta, achar com igual rapidez o livro que procurasse. Uma fina camada de poeira cobria os degraus das escadas das estantes, que pareciam, assim, há muito inutilizados e contrastavam curiosamente com o brilho lustroso das estantes e dos livros nelas.
Os livros então eram algo à parte, tão fascinantes quanto a biblioteca com seus labirintos de estantes. Havia livros de todos os lugares do mundo – e eu suspeitava que de fora dele também –, em todas as línguas imagináveis, de todas as épocas passadas – e, talvez, das ainda não vindas – sobre todos os assuntos existentes ou não e de todos os tamanhos, formatos e cores disponíveis.
No centro do Labirinto de Estantes havia um conjunto de poltronas e uma mesinha, coberta por revistas de receitas húngaras. 
– Erra aqui que eu estarrr antes de você cairrr, meu amiguinha. Prrrocurrando receita parra o jantarr. – disse, satisfeito, dando um tapinha na barriga – Você pode prrocurrarr uma livro e virr aqui enquanto eu pesquisarr, ou você pode procurrarr a saída, não é difícil.
– Por onde eu saio? – perguntei, olhando ao redor.
– Consegue chegarr ao lugarr onde caiu? Tem um escadinha na parrede que leva até a porrta. É simples.
– É... por hora acho que eu vou ficar por aqui, mas é bom saber. – respondi, já embrenhando-me no tortuoso labirinto. Sem procurar nada e ninguém que me guiasse, percebi o quanto ele era imenso e intrincado. 
Examinei atentamente os entalhes na madeira de uma parte de uma das estantes e percebi que se tratava de uma imagem do Aeliocóptero e seus muitos tripulantes de outrora. Andando depressa fui examinando outros entalhes, a maior parte retratava o Aeliocóptero ou o Capitão. Alguns personagens também se repetiam muitas vezes, como o Cozinheiro, um enorme ganso, um casal de gêmeos e um velhinho que me dava arrepios. Como se o Aeliocóptero quisesse me mostrar aquelas imagens, as curvas e os cruzamentos do Labirinto nunca me levavam a um corredor que eu já tivesse percorrido e eu não demorei muito tempo para perceber que a Biblioteca contava a história do Aeliocóptero, provavelmente desde o começo, quem sabe até o final.
Eu queria continuar vendo as imagens, queria chegar à primeira e conhecer toda a história do Aeliocóptero, mas percebi instintivamente que agora os corredores do labirinto me levavam para o lugar de onde eu viera.
E lá estava a mesa onde eu caíra, imensa, do lado de um vaso cheio de mapas enrolados. Até mesmo a parede atrás da mesa onde se escondia uma escadinha de barras de ferro era forrada de livros – o que, diga-se de passagem, tornava a escada quase impossível de se ver.
Mais uma vez na Sala das Poltronas, olhei pela porta abaixo pensando em como o cozinheiro subiria se a porta se fechasse. Mas algo me levava a crer que ele não chegara na Biblioteca pela escadinha nem sairia de lá por ela. De qualquer forma, deixei a porta aberta, coisas estranhas aconteciam naquele lugar.
Só algum tempo depois percebi que ainda não sabia onde era a cozinha...