segunda-feira, 1 de agosto de 2011

As Viagens do Aeliocóptero (pte 8) ou A Chegada de Levi

Acostumei-me de tal forma com o cantarolar de Sofia que passei a acreditar que a falta dele me faria mal. Passei a usá-lo para não me perder nas minhas peregrinações pelo Aeliocóptero, que ficavam cada vez mais ousadas.
Comecei por perscrutar toda a tubulação por onde eu e Alice chegáramos à cozinha. A tubulação acabava em uma sala cujas paredes eram inteiramente recobertas por espelhos de bordas douradas, de onde eu tive um pequeno problema para sair. Logo estava me enfiando em armários para encontrar passagens secretas, deslizando por baixo de camas atrás de alçapões e fazendo todo tipo de malabarismo que fosse necessário para descobrir mais e mais salas, mais e mais jardins.
– Sossegue, criança! Contenha-se – Aldo parecia bastante perturbado em me ver rondando por toda parte, coisa que fazia Carlito rir muito, espalhando fagulhas incandescentes por todo o chão.

Estávamos agora defronte ao mar. O Aeliocóptero parara alguns metros lá atrás, na areia branca que se estendia até a água. O cantarolar de Sofia seguia o ritmo das ondas que iam e vinham molhando nossos pés. Alice já estava nadando, ela fora a primeira a pedir para descer com o Cozinheiro, que estava num rochedo que fechava a praia, tornando-a uma linda baia. Cantando sua sempre animada canção, o Cozinheiro catava ostras verdes e outros petiscos esquisitos, com uma agilidade e rapidez inusitadas para o tamanho do seu corpo.
Voltamos ao Aeliocóptero que se pôs a andar. Carlito parecia enjoado, mal se equilibrava e o brilho dourado dos seus olhos e boca substituíra-se por um tom leitoso. O cheiro dos frutos do mar que o Cozinheiro carregava parecia fazê-lo piorar. Seguimos em linha reta pela areia, rumo ao mar, e Carlito piorava a cada metro.
– Bobagem! Frescura! Logo Carlito melhora, é sempre assim. – disse o Capitão, energicamente – Adiante!
O Aeliocóptero entrou na água com um ruído aquoso e passou a andar com mais lentidão e o ar cheirava à queima do gengibre ressecado com o qual Sofia e o Cozinheiro alimentavam Carlito.
– Você não vai querer perder a vista para ficar cuidando de uma velha salamandra moribunda, vai?– Carlito murmurou com um projeto de voz animada, ainda que roufenha, quando fiz menção de me ajoelhar ao seu lado – Vá olhar pela janela da Sala dos Botões, criança.
Peixes. Peixes de todas as cores, tamanhos e formatos passavam à minha frente, nadando no infinito imensamente azul que se estendia para todos os lados, envolvendo o Aeliocóptero num abraço irresistível. Íamos fundo, perto da areia clara e brilhante, roçando de leve nos arbustos de algas que passavam por baixo de nós e que foram aumentando à medida que nós íamos mais longe, até o ponto em que precisávamos desviar do que pareciam mais imensas árvores submarinas, tão cheias de peixes coloridos quanto as árvores em terra ficam cheias de pássaros.
Carlito logo melhorou, mas não restabeleceu completamente suas cores vibrantes de sempre. Curiosamente, debaixo d’água suas escamas adquiriam um brilho frio, que o tornavam um pouquinho assustador. Reforçamos seu abastecimento de carvão para que ele se mantivesse bem aquecido e seco e vez ou outra eu ia levar alguma coisa para ele comer nas Caldeiras. Sofia cantarolava e ele se balançava todo, em aprovação, Ernesto sentava-se ao seu lado com um cachimbo e contava histórias de lugares quentes que visitara recentemente. Bom, recentemente para eles, provavelmente uma quantidade de tempo que ninguém conhece.
Ainda que a água realmente o incomodasse, era visível que Carlito adorava ser paparicado – e quando não era, ameaçava adoecer de novo.
Um cardume de peixes de bigodes passava ao lado da minha janela quando acordei. Na verdade, aqui no fundo não era tão diferente da superfície. Nós voávamos na água e os pássaros que nos acompanhavam eram peixes. A maior diferença estava nas cores, que se organizavam de uma forma bastante inusitada. Estava no meio desses pensamentos quando ouvi Sofia. E dessa vez sua voz era ainda mais incrível, as notas dançavam ao meu redor e eu não pude fazer nada senão segui-las.
Quando dei por mim, estava me espremendo pela tubulação, rumo à Sala dos Espelhos, que refletia toda a luz do mundo e brilhava à minha frente. O som ficava cada vez mais próximo. Esgueirei-me até quase cair na sala, onde se encontrava Sofia.
Ela estava ali, bem no meio da sala, refletida por todos os espelhos. Talvez por isso a música soasse tão alta e incrível, talvez aquela quantidade de Sofias cantando tornasse a música mais forte. Sofia estendeu a mão para um dos espelhos e eu esperei que ela começasse a dançar. Mas não, quando a mão ia tocar o vidro, tocando a palma da mão refletida, não havia vidro, mas sim uma outra mão idêntica à que se estendera, que pegou a mão de Sofia. E Sofia abriu um largo sorriso e puxou a mão, que puxou um braço que puxou todo um garoto, idêntico e totalmente diferente de Sofia.
Levi cantava com Sofia na sua voz grave, mas clara e límpida, e os milhões de Sofias e Levis refletidos cantavam junto, tornando a música, agora completa, ainda mais inacreditável. Eles eram iguais, e ao mesmo tempo opostos. Levi era composto do mesmo material incolor de todas as cores de Sofia, seu sorriso era tão sincero e caloroso quanto o dela e todos os traços dos rostos dos dois eram iguais. Mas ao passo que Sofia era a feminilidade em forma física, Levi era a masculinidade em si.
– LEVI ESTÁ EM CASA! – ouvi Carlito gritar lá das Caldeiras e com sorrisos perfeitos e perfeitamente iguais os dois se viraram para mim.
– O-oi... – murmurei para Levi, que me estendeu a mão.
– Vamos, estou sentindo cheiro de festa.
Desci e nós passamos por um dos espelhos, indo dar numa sala cheia de almofadas e poltronas para todos os lados, onde todos surgiram de repente, cheios de abraços para dar, perguntas para fazer, saudades para expressar, beijos para distribuir, e comida para, evidentemente, comer. Todos, principalmente Sofia, queriam saber por onde Levi passara, como ele chegara no Aeliocóptero e o que ele andara fazendo. Quando ele se esquecia de alguma coisa, Sofia o lembrava. Levi também queria saber de todos, por onde haviam estado e como haviam chegado. Principalmente Sofia, ainda que me parecesse que essa história ele já conhecia.