sábado, 31 de dezembro de 2011

As Viagens do Aeliocóptero (pte 9) ou O Ganso

– Alice – murmurei, cutucando-a. Era noite e todos dormiam no Aeliocóptero quando eu me esgueirei para o quarto de Alice pela passagem estreita que encontrei no meu próprio. Aquela devia ser a conexão entre nossos quartos que a permitira vir me acordar para procurar a cozinha.
– Alice – repeti, balançando seu braço. Ela resmungou, virando as costas para mim – Alice, acorda! – choraminguei.
– Que foi? – ela respondeu, grogue, erguendo um pouco a cabeça despenteada.
– Você sabe como a gente sai daqui? – perguntei e tenho certeza que meus olhos brilhavam de ansiedade.
– Pela porta – resmungou e já voltava a dormir quando eu a sacudi de novo.
– Alice, vamos, acorde! Quero sair do Aeliocóptero. Vamos nadar lá fora! Veja, aqui mesmo à noite não é escuro!
– Mas por que essa hora? Não dá para deixar para pedir ao Capitão de manhã? – murmurou, preguiçosa, esfregando os olhos.
– Ele não deixaria – murmurei, timidamente – Vamos! Eu sei que você vai gostar!
– Eu gostaria mesmo é de dormir mais um pouco... Mas vamos – disse, levantando-se.

Decidimos encaminhar-nos para a Sala dos Botões, onde esperávamos encontrar algum meio de sair sem precisar abrir a escotilha, o que poderia fazer com que a água caísse para dentro do Aeliocóptero, numa imensa cachoeira de água salgada que molharia tudo e todos, além de transformar o Aeliocóptero em apenas uma casca metálica cheia d’água no meio do mar – um ambiente inóspito para nós, respiradores de ar.
Não, a saída deveria ser pelo chão, assim a água não cairia no Aeliocóptero nem nosso ar cairia em lugar algum.
Procuramos uma alavanca ou botão que nos servisse por horas a fio e já estava quase perto de amanhecer quando desistimos. Alice sentou-se no chão encostada a uma parede, sonolenta, decepcionada, desacorçoada.
– Grande ideia. Que você pretende fazer agora?
– Não sei –, admiti, com imenso desanimo, sentando-me ao seu lado.
Assim que eu encostei minhas costas na parede, esta vibrou atrás de nós. Pulamos de susto e percebemos que cada placa metálica que compunha a parede se movia, com grande estrondo.
A parede ainda estaca no meio dessa movimentação quando Aldo apareceu, esbravejante:
– Mas que barulheira é essa? E qual o motivo da abertura da parede? Que significa isso tudo? – e eu poderia jurar que seus diáfanos cabelos azuis estavam desordenados. O bradar furioso de Aldo confundia-se com o barulho da parede, numa cacofonia quase organizada que cessou sem atravessar, quando a parede por fim encontrava-se aberta.
E a água estava parada lá fora, na mesma posição que estivera minutos antes, quando ainda havia uma parede entre nós e toda aquela imensidão que se estendia à nossa frente agora.
Alice virou-se para mim, os olhos brilhando loucamente, antes de correr para a água. Rapidamente, corri junto dela, deixando um Aldo quase vermelho de raiva para trás. Quando estávamos quase atravessando a cortina, espiei a Sala dos Botões com o rabo do olho e pude ver o Capitão e o Cozinheiro chegando, às pressas, para acudir Aldo.
Lá fora era ainda mais bonito do que parecia olhando pelas janelas. Era azul, era imenso, era brilhante. Era de todas as cores e se movia o tempo todo, era vivo. O Aeliocóptero estava aninhado em uma moita macia de alga alaranjada e reluzente e seu metal multicolorido parecia ainda mais vibrante do que parecera antes. E maior.
Tudo era enorme, era imenso. E ao mesmo tempo era minúsculo, insignificante no meio daquele azul infinito. Os peixes voavam na água acima da minha cabeça, havia grandes arbustos coloridos por toda parte, onde certamente escondiam-se feras perigosas, adormecidas depois de um bom lanche. Alice e eu caminhávamos e flutuávamos e nadávamos e voávamos. Aquilo não parecia nem vagamente incomum para ela, nada nunca parecia.
Havia uma fortaleza de corais coloridos, reluzentes e retorcidos ao longe, tão cheia de vida que parecia abandonada pelo tempo. Cercando essa fortaleza havia uma floresta densa e escura onde nada se movia além das folhas, que iam e vinham com o movimento da água.
Para meu espanto, era precisamente para lá que Alice nos estava conduzindo. Ao me dar conta, parei, sem nem ao menos perceber.
– Com medo? – Alice virou-se para mim com um meio sorriso malicioso, antes de disparar em direção à floresta. Não tive outra opção senão segui-la, não saberia mais encontrar o Aeliocóptero sem ela.
Logo me vi embrenhando-me na entre as folhas largas da floresta sombria enquanto tentava seguir Alice, que corria à minha frente, lépida como uma enguia, enroscando-se nas sombras quase sólidas que formavam um labirinto por todos os lados. Chegamos por fim a uma clareira esverdeada, brilhante e perfeitamente redonda, cujo chão era coberto por pedrinhas azuis muito polidas e ligeiramente cobertas de limo.
E ali no meio da clareira, brilhando com aquela estranha luz esmeralda, estava o maior e mais imensamente branco ganso que eu já vira. Ele virou seu longo pescoço para encarar-nos e eu tenho razoável certeza de que seu olhar era cheio de desdém e superioridade. Não durou muito, ele voltou a cabeça para debaixo da asa, na sua posição original.
– Ora vamos, deixe de ser mole, levante-se! – disse Alice, enérgica e ligeiramente irritada, como se falasse com alguém com quem tivesse certa intimidade. O Ganso simplesmente suspirou. – Molenga!
Alice aproximou-se com passos firmes e pôs-se a falar brava, na mesma língua em que o Cozinheiro cantava às vezes. Não faço ideia do que ela possa ter dito, o fato é que fez com que o Ganso levantasse, indignado, e começasse a segui-la, mal olhando para ela ou o chão.
O caminho de volta foi bastante mais fácil do que aquele que nos trouxera até a clareira, principalmente por que era muito mais fácil seguir o imenso e rebolante traseiro do ganso, que ia à minha frente. Não pude deixar de achar aquilo um tanto bizarro, aquele bicho tão desproporcionalmente grande, seguindo a menina que de repente parecia tão pequena, de braços cruzados.
Nosso curioso cortejo seguiu até o Aeliocóptero, que continuava com a parede aberta. Mais uma vez, o Cozinheiro saíra para suprir-se de qualquer coisa que cheirasse bem o bastante para servir de tempero. Ninguém se surpreendeu com a chegada de um ganso gigante, mas isso não era novidade para mim. Todos que chegavam ao Aeliocóptero pareciam ser esperados. Havia inclusive num canto uma almofada vermelha e imensa, toda cheia de bordados dourados, na qual o Ganso imediatamente instalou-se, com toda a sua pompa.
E lá ficou, pelos dias que se seguiram, olhando a tudo e a todos com distanciamento e descaso, suspirando esporadicamente.