sábado, 4 de dezembro de 2010

As Viagens do Aeliocóptero (pte 5) ou O Homem Das Cabras



Acordei na minha cama. Não pergunte como, a última coisa de que me lembrava da noite anterior era de ter um grande e apetitoso prato de um estranho mingau rosado na minha frente. E então eu acordara, na minha cama, confortável entre cobertas. Chovia, as gotas gordas batiam na janela e escorriam retas para baixo pelo vidro, ignorando o movimento do Aeliocóptero – movimento que eu aprendera a sentir, a saber com todos os sentidos do meu corpo.

E por mais nove dias continuou chovendo, o que me prendeu do lado de Dentro. Não que eu reclamasse, adorava ajudar o Capitão a dirigir o Aeliocóptero, que ia por terra, achando caminho por lugares improváveis quando necessário, na mata densa na qual nos metêramos e já saíamos, tornando o campo pelo qual andávamos cada vez mais aberto, e logo começamos a subir a Cordilheira.
Nas horas vagas, Alice e eu saíamos à caça dos cômodos secretos do Aeliocóptero. Descobrimos um quarto com guarda-chuvas e sombrinhas por todos os lados e outro que parecia muito pequeno e só tinha uma lareira que parecia grande demais para o aposento onde estava toda entalhada como as estantes do Labirinto. Achamos também um curioso pomar, anexado de uma horta, cheios de frutas e legumes e verduras estranhos, com os quais nos divertimos por algum tempo. Havia uma árvore cujos frutos pareciam grandes rabanetes roxos muito doces que, mordidos uma vez, deixavam a voz aguda, pela segunda vez deixavam a voz grave e achamos melhor parar por aí. O efeito durou um dia inteiro, e rendeu bons risos.
– Ora. Vamos ter que parar. – disse o Capitão, com um grande suspiro desanimado – Mover o Aeliocóptero nessa chuva está cansando o Carlito e nunca se sabe o que ele pode fazer quando está cansado. E eu tenho medo que ele se resfrie. Se bem que... Bom, de qualquer forma, é melhor parar aqui do que mais para cima.
– Mas por quê? – perguntei.
– Oh, é claro que você é genial o bastante para achar um lugar seguro e espaçoso o bastante para o Aeliocóptero parado lá em cima, não é mesmo? Aproveite para ensinar ao Capitão como se encontra um lugar abrigado da ventania da parte mais alta da Cordilheira, quando nós passarmos por ela. Genial, sem dúvida.
Enquanto Alice e eu nos fuzilávamos com os olhos, numa disputa que eu evidentemente perdi, o Capitão puxou uma alavanca que parou o Aeliocóptero com um tranco que quase nos derrubou.
Uma vez perdida a disputa com Alice, virei-me para perguntar ao Capitão sobre Carlito. Mover o Aeliocóptero?! Como assim? Mas, mais uma vez, algo me interrompeu assim que abri a boca.
O som alto, agressivo, metálico, tomou o lugar como se lá fora algo ou alguém esmurrasse raivosamente a parede do Aeliocóptero. Alice e eu nos encaramos e voltamo-nos para o Capitão que se entretinha apertando botões e puxando alavancas da Sala dos Botões aleatoriamente, sem propósito aparente e sem parecer importar-se muito com o barulho.
– Mas diabos! É impossível arrumar a Biblioteca com essa barulheira! Mas é claro que isso não é problema do excelentíssimo Capitão e seus preciosos botões, muito ocupado atormentando o pobre Carlito para se preocupar com o conforto da tripulação – resmungou Aldo irritadíssimo em sua azulez, atravessando uma parede que me parecia ser de metal bastante sólido.
O Capitão gesticulou com a mão como quem diz “bobagem”, sem desviar os olhos da alavanca que ele empurrava e puxava e tornava a empurrar e puxar.
– Bolas. – murmurou Aldo, chutando um quadrado de metal azulado na base da parede. Surpreendentemente, o quadrado se moveu silenciosamente para o lado, como que se esquivando do pé do Bibliotecário.
O movimento do quadrado abriu uma fenda que foi se alargando e crescendo à medida que as outras placas moviam-se para os lado, acomodando-se umas nas outras, até abrir-se um grande portal por onde entravam o vento com cheiro de grama e imensas gotas da chuva que era tão forte lá fora que não permitia ver a noite escura além do Portal.
Foi quando com um relâmpago fez-se um clarão reluzente que revelou um imenso vulto – ou uma multidão deles – parado ao Portal.
­­­– Mas finalmente, eh? – disse uma voz grave e balida, muitíssimo aborrecida e ligeiramente impaciente. – Estamos ficando molhados até os ossos, é o que eu digo.
– Ora, entre, Ernesto. Desculpe a demora. – disse Aldo, saindo pelo Portal e conduzindo a multidão de vultos para dentro do Aeliocóptero. – Não imaginei que aquela barulheira toda pudesse ser você. Quero dizer, você entende, não?
– Claro, claro. Você sabe que eu não reclamo por mim, mas pelas meninas... – disse o vulto do meio, que revelara-se um homem bastante alto e magro, que abraçava seu sobretudo verde estufado como se ali estivesse algum grande tesouro. Na verdade, assim que cutuquei Alice para perguntar o que ela achava que poderia vir a estar escondido ali, o sobretudo verde emitiu um balido alto e reclamoso, assustando-me. – Hoho! Saia, querida. – disse Ernesto, sorrindo ao abrir o sobretudo, de onde saltou uma cabra muito branca. Percebi então que a multidão de vultos que o acompanhava era composta por outras duas cabras, absurdamente gordas e tão brancas quanto a primeira. Na verdade, as cabras pareciam muito mais bem cuidadas que o homem de cabelos cinzentos e olhos enevoados que conferiam-lhe ares de louco. – Mas que chuva, eh?
– Mas que barulheira, isso sim! Ora, que barulheira que você fez, homem! – disse o Capitão, abrindo um grande sorriso e os braços para o homem encharcado à sua frente. Risonho, Ernesto atravessou a saleta em dois passos gigantescos e abraçou o Capitão.
– Há quanto tempo, meu velho! Há quanto tempo!
Encarei Alice interrogativamente, mas agora ela e Aldo discutiam aos cochichos o lugar onde ficariam as três cabras, duas das quais imensas. Aparentemente, as bichas, que agora roíam, satisfeitas, a barra do sobretudo do dono, precisavam de muita comida e de muito espaço para se exercitarem, o que podia ser potencialmente problemático de se arranjar. Entretanto, Alice e Aldo pareciam mais preocupados em como levariam as cabras para um lugar que ambos pareciam estar de acordo que existia e que seria um bom lugar. Pareciam também saber muito bem onde ficava, e falavam de um jeito que me fez acreditar que era um lugar um tanto inacessível. Para as cabras, ao menos.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

As Viagens do Aeliocóptero (pte 4.1) ou Ainda na Cozinha ou Aldo


Quando, de repente, uma figura de uma azul elétrico pálido e perolado entrou por uma porta que eu ainda não percebera carregando um gato muito laranja. O estrondo causado pela abertura da porta chamou a atenção do Cozinheiro, que ainda não nos vira.

– Musti! Aldo, você encontrrrar Musti! Obrrigado! – exclamou, ao apanhar o gato – que era muito gordo.
Agora, sem o peso do gato, Aldo subiu alguns centímetros no ar e percebi que ele flutuava, apesar de ter o formato e o tamanho de um homem franzino.
– Aldo é um fantasma – sussurrou Alice ao meu ouvido – Não que ele goste de ser lembrado disso.
O longo e azul nariz de Aldo franziu-se erguido no ar numa expressão digníssima.
– Encontrei-o na minha Biblioteca. Novamente. A situação vem se tornando insustentável, Cozinheiro. Sei que o Capitão permitiu Mustafá no Aeliocóptero e que agora não há mais nada que se possa fazer, visto que ele foi incorporado, mas a Biblioteca não é lugar para um gato. – disse, severamente.
– Orrra, Aldo, fique feliz porrr ela não estarr perrdido naquela sua Labirrrinta maluca. – retrucou o Cozinheiro fazendo festinhas no gato que pareciam deprimir o fantasma, que suspirava.
– Mustafá não se perderia num labirinto controlado por mim. Muito menos no meu Labirinto. – disse, revirando os olhos.
Foi quando deu pela nossa presença. Seus olhos contraíram-se em duas fendas azuis e ele pigarreou.
– Crianças. – murmurou para o Cozinheiro.
– Eh? Ah! CRRRIANÇAS! Vocês não deviam estarrr no cama? Dorrmindo? – ele parecia bastante surpreso em nos ver alí.
– Nós não estávamos conseguindo dormir... – disse Alice, com voz inocente, os olhos lampejando do chão para o Cozinheiro, doces e ingênuos, as mãos unidas à frente do corpo.
– Pobrres crrianças! Imagino que devem estarrr com fome. A fome atrrapalha a sono, vocês sabem... Mas vamos, sentem-se vou prrreparrrar algo parra vocês minhas crrrianças. – disse, puxando duas cadeiras de algum lugar e abrindo espaço na mesa para nós. Então começou a caçar ingredientes para nos preparar um mingau, ou foi o que eu imaginei.
Ele abria armário após armário e gaveta após gaveta numa parede que de repente pareceu impossivelmente grande na Cozinha pequena, tirando maços de ervas e sacos de temperos e farinhas e ingredientes e condimentos mais potes e potes cheios de coisas que eu não poderia dizer o que eram catalogados com etiquetas escritas à mão pelo próprio Cozinheiro em alguma língua há muito esquecida.

– Animalzinho impossível. – disse Aldo, pegando Mustafá, que se preparava para pular para dentro de um armário, pelo cangote – Esse gato deveria se chamar Barbrama. Mustafá...
– Barbrama? Como assim? ­– perguntei, atraíndo os olhares ameaçadoramente brilhante de Alice e azulada e dignamente provocado de Aldo.
– Sim, Barbrama – ele respondeu, ainda com ar de ofensa, como se a existência do gato fosse uma afronta do pior nível – Gato barbramento, só arranja confusão. Barbrama.
Eu pretendia perguntar mais alguma coisa, mas Alice me atingiu com um pontapé na canela por sob a mesa, desencorajando-me. Agora o Cozinheiro, que já empilhara todos os seus ingredientes na ponta da mesa e voltara a cantarolar a canção da caçarola procurava uma colher entre todos os instrumentos brilhantes pendurados em outra parede. Logo ele voltou-se novamente para nós, com um gigantesco caldeirão tilintante nas mãos gorduchas.
– Orrra, Aldo, minha carro, parre de atorrrmentarrr Musti. Ele já deve estarr bastante trraumatizada. – disse, sem olhar, tirando do caldeirão uma panelinha e apanhando uma faca com a qual se pôs a cortar um maço de folhas que liberou um cheiro apetitoso e curiosamente esverdeado que inundou a cozinha, aumentando nossa fome.
Estranho como os cheiros se espalhavam pela Cozinha, todos absurdamente coloridos, as panelas penduradas rebrilhando e tilintando alegremente em enlouquecida aprovação. Até Aldo, cujo nariz azul parecia constantemente franzido, parecia mais leve e interessado na atividade do Cozinheiro.
–Talvez uma folhinha deste aqui, não? – sugeriu, rodando um maço do que me pareciam muitos trevos minúsculos e azuis entre os dedos finos e igualmente azuis.
– AHÁ! Clarro, Aldo, grrande ideia, serr prrecisamente o que eu estava prrocurrando. – respondeu o Cozinheiro, satisfeitíssimo, cantarolando cada vez mais alto e rápido a canção da caçarola.
– Mas como o Aldo sabia? Aldo, você come? – perguntei, a perplexidade tangível na voz, ganhando mais um pontapé dolorido de Alice, que me encarava enfurecida.
– Idiota. – seus lábios desenharam a palavra, sem soltar som algum.
– Evidente que não! Criança tola e suas perguntas imbecilóides! – Aldo parecera aumentar de tamanho, bufante, uma fumacinha azulada saindo de suas orelhas, a voz assustadoramente gutural – Alguém devia instaurar um toque de recolher nesse bendito Aeliocóptero, o lugar está absolutamente fora de ordem!... Perdeu a noção do perigo!
– Aldo, acalme-se homem! Por Júpiter! O que está acontecendo aqui? Céus, vocês me acordaram! – disse o Capitão ao entrar pela portinha semi-escondida na parede dos armários – Ora, ainda nem bem amanheceu e você já está cozinhando?
– Mas clarro! Crrianças na Cozinha e você querr que eu fique parrado? Me passe aquele colherr, porr favorr. Obrrigada. Agorra, Aldo encontrrou Musti!
– Pelo menos ele não foi parar na fornalha, aquele Carlito não é confiável. – disse Aldo, fungando, já recomposto.
Eu pretendia perguntar quem era Carlito, mas de repente o Cozinheiro colocou um prato cheio de um mingau rosado, cheiroso e suculento na minha frente e na de Alice e nós não fomos capazes de pensar em mais nada além de traçar aquele prato. E depois, aquecidos e de barriga cheia, nos vimos de volta na cama.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

As Viagens do Aeliocóptero (pte 4) ou Na Cozinha

Sem conseguir dormir, revirava-me na cama. Os raios prateados de luar que invadiam o quarto pela janela aberta conferiam a tudo uma curiosa coloração azulada. Virei-me novamente e qual não foi minha surpresa ao deparar-me com  Alice ajoelhada ao lado da minha cama fitando-me com aqueles olhos imensos.
– Estou com fome – constatou – Imagino que você saiba me dizer onde é a cozinha.
– Desculpe... Eu não... Ainda... – murmurei, de forma confusa - Trabalhando nisso.
Ela suspirou, revirando os olhos.
– Quer vir comigo? Procurar, digo.
Balbuciei mais qualquer coisa afirmativamente e pulei da cama, procurando algo para calçar.
– Ora, deixe disso. Vamos.
E fomos com os pés descalços mesmo. Voltamos a todos os cômodos que eu já conhecia, incluindo as Caldeiras e a Biblioteca, é claro, sempre procurando passagens e entradas que pudessem ter passado despercebidas.
Sempre tomando o cuidado de não fazer barulho para não acordar ninguém – ainda que eu duvidasse que alguém fosse nos ouvir, por mais barulho que fizéssemos – voltamos à saleta antes da Sala dos Botões e jogamo-nos no sofá, desanimados.
– Droga. Certeza que você não esqueceu nada? – perguntou, ligeiramente decepcionada.
– Absoluta. – respondi, encarando meus pés descalços.
Alice fitava o teto de placas de metal pensativamente.
– Mas é claro! O tubo de entrada! Parece que a memória de alguém não anda muito bem, não é mesmo? – disse, os olhos zombeteiros pousados em mim. Percebi que minhas bochechas avermelhavam-se. Eu realmente esquecera o tubo de entrada.
–É inútil, as paredes dele são totalmente lisas e sem entradas. – garanti, ainda ruborizando.
– Você por acaso já procurou lá?
Gesticulei negativamente em resposta.
– Ma...
– Não temos nada a perder, ora, vamos. Já procuramos em todos os outros lugares possíveis, só pode estar lá!
– Você não entende, aqui as coisas são diferentes, estão lá, mas só aparecem quando querem. Se a cozinha não quiser ser encontrada nós só estaremos perdendo tempo. – disse, em minha defesa.
– Ótimo, então você propõe que fiquemos esperando até que a cozinha caia no nosso colo? Não, obrigada. Eu sei como funcionam as coisas aqui e basta procurar no lugar certo. Estou indo. Você decide se vem comigo ou se volta a dormir.
Ela já começava a subir a escadinha de barras amarelas de metal que levava pelo tubo e começava a sumir de vista quando fui atrás.
Já começávamos a desanimar e cogitar retorno quando Alice soltou uma exclamação satisfeita e, com a leveza de um gato, atravessou o tubo num salto. A despeito de que houvesse algo em que se segurar apenas de um lado do tubo – lado do qual ela acabara de saltar – ela permaneceu onde pousou, como se parada no ar.
– Aqui, achei – disse, satisfeita – Não sei onde vai dar, mas é outro túnel e por este a gente pode engatinhar, Você vem?
Ela me encarava com uma sobrancelha erguida em desafio, então subi um pouco mais da escada e joguei-me na barra que usávamos para descer, o que me fez deslizar um pouco para baixo. Busquei um jeito desajeitado de passar da barra para o túnel, mas acabei precisando da ajuda de Alice, que pareceu muito feliz em caçoar de mim enquanto engatinhávamos no túnel.
Logo as brincadeiras perderam a graça e nós prosseguimos em silêncio por mais um longo trecho, sempre procurando entradas ocultas no túnel estreito.
– Ahá!  – exaclamei, assustando até a mim, depois do longo silêncio – Aqui, – disse, apontando uma entrada lateral que acabava em algum lugar de azulejos brancos, pelo que eu podia ver.
Mais perto, agora, ouvíamos a voz do cozinheiro numa empolgada canção sobre caçarolas em alguma língua desconhecida. Uma vez no fim do túnel, saltei para o chão, pousando com um baque suave, finalmente na cozinha. A Cozinha, diferentemente dos outros cômodos que eu  já encontrara, era bastante pequena. A mesa de madeira clara, coverta de livros e temperos, no centro, ocupava quase todo o espaço e a pia de tampo de mármore ocupava toda uma parede. Havia uma parede coberta de armários e gavetas e outra com milhares de aparatos pendurados. Outra parede era ocupada por algo que parecia uma grande lareira com um forno embaixo que provavelmente servia de fogão.  Alice pousou silenciosamente ao meu lado e nos encaramos sem saber muito bem o que fazer. O brilho nos olhos dela me indicava que ela tinha uma ideia.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

As Viagens do Aeliocóptero (pte 3) ou Alice

             Acordei com um baque suave. Vi pela minha janela que o dia ainda não amanhecera completamente, o céu clareava lentamente na manhã de aparência gélida. Escorreguei na barra para a Sala dos Botões, onde encontrei o Capitão e o Cozinheiro numa complicada operação de pouso.
– Maravilhoso, maravilhoso! Venha cá, pegue seu café da manhã e nos ajude – disse o Capitão, muitíssimo atrapalhado, mordiscando uma torrada com geléia enquanto puxava três alavancas – uma delas com o pé.
– Tome aqui, crrriança. Coma, coma. E desça nas caldeirrras – disse o Cozinheiro, alegremente, me empurrando um prato com bolinhos e torradas enquanto apertava uma série de botões coloridos e piscantes repetidas vezes.
– Cald...
– Sim, sim, desça – o Capitão me interrompeu, gesticulando com o queixo para um alçapão aberto ao seu lado.
Desci, ainda mastigando meu bolinho. Eu poderia ter entrado num forno. Tudo lá embaixo era em tons alaranjados e amarronzados, tudo fervia e se movimentava, tudo era vivo. Era como se eu estivesse no coração do Aeliocóptero, grandes tubos pulsantes levando a água fervente de um lado para o outro.
– Não fique aí sem fazer nada! Alimente o fogo! – gritou o Capitão lá de cima – Use a pá para jogar o carvão!
Olhei para os lados procurando a pá – e o carvão – mesmo sem saber o que faria quando encontrasse. Achei-a fincada numa enorme montanha de carvão sob um emaranhado de engrenagens ruidosas. Escalei o carvão para pegar a pá e, uma vez lá em cima, pude ver a imensa fornalha que a pilha de carvão escondia, algumas labaredas lambendo a abertura como línguas de uma monstruosa boca.
Escorreguei pela pilha de carvão. Curiosamente eu não sentia mais calor aqui, na frente da fornalha, do que antes, mesmo que agora estivesse a poucos centímetros do que eu acreditava ser a maior fonte de calor que já vira. E comecei a jogar pá atrás de pá de carvão dentro daquela boca colossal, as línguas-labaredas lambendo os lábios, gulosas.
Um baque muito maior que o anterior – e esse me fez cair para trás – seguido de um chamado do Capitão, me informou que nós finalmente pousáramos. Subi de volta para a Sala dos Botões por uma escada de cordas que eu poderia jurar que não estava ali antes e dei de cara com o Cozinheiro e o Capitão jogados no chão, exauridos.
– Muito bem, realmente ótimo – arfou o Capitão gesticulando para o chão – Sente-se aí e descanse um pouco conosco. Nós merecemos.
– A melhorrr pousa de que eu já parrrticipei – assentiu o Cozinheiro com uma cara satisfeita, e me ocorreu que eu não gostaria de ter participado do pior pouso.
Após um curto descanso, enviaram-me para explorar o lugar onde havíamos pousado. Era a primeira vez em um longo tempo que eu saia do Aeliocóptero, pensei com um arrepio ao escalar a escadinha que eu encontrei no tubo por onde escorregara para entrar. De cima do Aeliocóptero a vista era incrível, nós pousáramos em uma enorme cadeia de montanhas de picos nevados e enevoados, além dos quais se via, lá embaixo, uma densa floresta, iluminada pelos primeiros raios dourados de sol. Desci pela escadinha de barras amarelas até que a altura fosse suficientemente baixa para que eu pudesse saltar para a relva salpicada de neve.
Inspirei profundamente, olhando ao redor e me assustei ao perceber que o Capitão e o Cozinheiro estavam abaixados a alguns metros, estudando alguma coisa.
– E aí você fica pensando, como será que eles vieram parar aqui fora – disse uma voz baixa e feminina ao meu lado, assustando-me novamente. Num pulo, virei para encarar a figura que me falara.
– Te assustei? – perguntou a garota, os olhos brilhando, divertidos – Pois não se assuste. Alice. – disse, estendendo a mão muito clara para mim, num cumprimento formal. Apertei a mão que ela me estendera, ainda me recuperando do susto.
Ela examinou atentamente a própria mão, e então correu os olhos por mim, dos pés à cabeça.
– Interessante seu penteado... – disse, uma sobrancelha longa e firme erguida, fazendo-me lembrar que escorregar naquela pilha de carvão provavelmente me sujara a mais não poder e meu cabelo devia estar um caos à parte. Passei uma mão no cabelo, tentando arrumar um pouco, fazendo-a rir e corando loucamente.
– Alice! Eu realmente esperava encontrá-la por aqui, minha cara – disse o Capitão, sorridente, voltando-se para nós – Você deveria tomar um banho, jovem – acrescentou, olhando para mim, as mãos na cintura, o que arrancou um sorrisinho de Alice.
– O que o Cozinheiro está procurando? – perguntei, esperando que o carvão no meu rosto disfarçasse o rubor que eu tinha certeza que subira às minhas bochechas.
– Ervas – suspirou o Capitão – Procurando ervas... mas vocês podem ir entrando, se quiserem... Você realmente precisa de um banho. Vamos ficar aqui algum tempo, então vocês terão tempo de explorar depois, se quiserem, ainda que eu ache que Alice já ficou aqui tempo o bastante, não?
Voltando para o meu quarto, tomei um bom banho, um bom e longo banho, que me reinstaurou a cor original. Então, não encontrando ninguém pelo Aeliocóptero, tornei a sair e foi com alguma surpresa que eu percebi que o Sol se erguera no céu, conferindo à névoa uma coloração amanteigada.
Os meus três companheiros de viagem estavam reunidos em volta de uma mesa de madeira grande e muito bem guarnecida de pratos apetitosos. Sentei-me em uma das muitas cadeiras vazias em volta da mesa, a minha perto do Cozinheiro, que servia feliz prato do Capitão, à ponta da mesa, enquanto Alice, à esquerda do capitão e, por tanto, à minha frente, se servia de uma tortinha de morango. O Capitão, como tantas vezes, contava a história de uma de suas aventuras. Estranhamente, eu tinha a nítida sensação que eu era a única pessoa que ainda não conhecia aquela história e então me ocorreu que o Capitão soubera o nome de Alice antes mesmo de ela se apresentar. Como se eles já se conhecessem.
Agora o Aeliocóptero seguia viagem com quatro tripulantes, ou assim eu imaginava.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

As Viagens do Aeliocóptero (pte 2) ou O Cozinheiro

   Já contava um mês que eu entrara no Aeliocóptero e não saíra mais. Não me fazia falta, o mundo de Fora. Eu passava horas na Sala dos Botões, aprendendo a manipulá-la e mudando constantemente nossa rota, sob o comando do Capitão, cujas várias histórias que eu conhecera nas longas tardes, passadas no imenso terraço que eu descobrira, encheriam um livro. Eu também dedicara algum tempo explorando o lugar, à procura de mais cômodos. Além do terraço  de onde eu pude ver que o Aeliocóptero voava batendo duas colossais asas de pano e estrutura metálica que batiam com som de mar – eu descobri um quarto com uma enorme janela, para onde me mudara, e uma sala cheia de poltronas de todas as épocas, cores, formatos e tamanhos.
   Aliás, foi justamente na nessa sala que aconteceu a primeira coisa curiosa em algum tempo – curiosa para os padrões do Aeliocóptero, que nunca foi padrão de normalidade.
Numa tarde fria e chuvosa de mais para cogitar a ideia de ficar no terraço, pensei em voltar à Sala das Poltronas, sempre seca, quente e acolhedora. Enquanto eu experimentava algumas poltronas procurando a mais confortável, percebi que numa parede onde antes houvera uma tapeçaria agora havia uma porta de madeira. Levantei-me num salto e marchei até a porta, que abri impetuosamente.
   Não olhei o que havia atrás da porta antes de transpô-la e foi com grande surpresa que me percebi caindo no escuro. Eu não era capaz de ver qualquer coisa para os lados ou para baixo e lá em cima havia apenas o retângulo luminoso da porta que eu deixara aberta, que ficava cada vez menor e menor e menor.
   Cai durante bem uns cinco minutos e já me acostumava à estranha sensação provocada pela queda quando ela foi dolorosa e ruidosamente interrompida por algo duro. Uma luz se acendeu me fazendo piscar com força e meus olhos lacrimejarem.
   –O que serrr você, minha amiguinho?
   Abri os olhos e a primeira coisa que vi foi a curiosa figura que me falara. Um homenzinho nem alto nem baixo – mas nem por isso menos inho –, inacreditavelmente redondo, ostentando um bigodinho à lá Salvador Dalí e inteiramente vestido de cozinheiro. Assim como aconteceu com o Capitão, essa figura era tão claramente aquilo que era que não deixava dúvidas, e esse era o Cozinheiro, ou melhor, Cheff Cozinheiro. E agora ele me encarava curioso, esticando seu corpo roliço pela imensa mesa onde eu caíra para me ver melhor.
– O-oi... Eu sou... digo, eu ajudo o Capitão, opero a Sala dos Botões... E você, quem é?
– Não perrrguntei o que você faz, perrrguntei o que você serrr. Eu serrr o Cozinheirra! – disse, sorridente – Você já conhecerrr o biblioteca?
E assim, com o braço gorducho do Cozinheiro nos meus ombros, eu fui guiado pelo lugar mais fantástico que eu já vira até então. A luz que inundava os corredores de estantes vinha aparentemente de lugar nenhum e ainda assim estava em todos os lugares iluminando os livros que pareciam se estender até o infinito, nas estantes de madeira de tempos imemoriais cheias de entalhes delicados e minuciosos que por si só contavam histórias incríveis. 
A Biblioteca estava organizada de alguma forma incompreensível que misteriosamente permitia a qualquer um chegar rapidamente à seção que queria e, uma vez na seção correta, achar com igual rapidez o livro que procurasse. Uma fina camada de poeira cobria os degraus das escadas das estantes, que pareciam, assim, há muito inutilizados e contrastavam curiosamente com o brilho lustroso das estantes e dos livros nelas.
Os livros então eram algo à parte, tão fascinantes quanto a biblioteca com seus labirintos de estantes. Havia livros de todos os lugares do mundo – e eu suspeitava que de fora dele também –, em todas as línguas imagináveis, de todas as épocas passadas – e, talvez, das ainda não vindas – sobre todos os assuntos existentes ou não e de todos os tamanhos, formatos e cores disponíveis.
No centro do Labirinto de Estantes havia um conjunto de poltronas e uma mesinha, coberta por revistas de receitas húngaras. 
– Erra aqui que eu estarrr antes de você cairrr, meu amiguinha. Prrrocurrando receita parra o jantarr. – disse, satisfeito, dando um tapinha na barriga – Você pode prrocurrarr uma livro e virr aqui enquanto eu pesquisarr, ou você pode procurrarr a saída, não é difícil.
– Por onde eu saio? – perguntei, olhando ao redor.
– Consegue chegarr ao lugarr onde caiu? Tem um escadinha na parrede que leva até a porrta. É simples.
– É... por hora acho que eu vou ficar por aqui, mas é bom saber. – respondi, já embrenhando-me no tortuoso labirinto. Sem procurar nada e ninguém que me guiasse, percebi o quanto ele era imenso e intrincado. 
Examinei atentamente os entalhes na madeira de uma parte de uma das estantes e percebi que se tratava de uma imagem do Aeliocóptero e seus muitos tripulantes de outrora. Andando depressa fui examinando outros entalhes, a maior parte retratava o Aeliocóptero ou o Capitão. Alguns personagens também se repetiam muitas vezes, como o Cozinheiro, um enorme ganso, um casal de gêmeos e um velhinho que me dava arrepios. Como se o Aeliocóptero quisesse me mostrar aquelas imagens, as curvas e os cruzamentos do Labirinto nunca me levavam a um corredor que eu já tivesse percorrido e eu não demorei muito tempo para perceber que a Biblioteca contava a história do Aeliocóptero, provavelmente desde o começo, quem sabe até o final.
Eu queria continuar vendo as imagens, queria chegar à primeira e conhecer toda a história do Aeliocóptero, mas percebi instintivamente que agora os corredores do labirinto me levavam para o lugar de onde eu viera.
E lá estava a mesa onde eu caíra, imensa, do lado de um vaso cheio de mapas enrolados. Até mesmo a parede atrás da mesa onde se escondia uma escadinha de barras de ferro era forrada de livros – o que, diga-se de passagem, tornava a escada quase impossível de se ver.
Mais uma vez na Sala das Poltronas, olhei pela porta abaixo pensando em como o cozinheiro subiria se a porta se fechasse. Mas algo me levava a crer que ele não chegara na Biblioteca pela escadinha nem sairia de lá por ela. De qualquer forma, deixei a porta aberta, coisas estranhas aconteciam naquele lugar.
Só algum tempo depois percebi que ainda não sabia onde era a cozinha...

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

As Viagens do Aeliocóptero (pte 1) ou Capitão

   Lá estava ele. Imenso, colorido, reluzente, curiosamente familiar. Lembro como se fosse hoje. Eu seguira o brilho que vira entre as árvores até aquele campinho. E lá estava o aeliocóptero. Foi a primeira vez que o vi, mas soube o que era desde o princípio.
   O aeliocóptero estava pousado no meio do campinho e era tão grande que mal parecia caber onde estava. Mas cabia. Inspirei profundamente, por que a vasta imensidão do objeto zepelinesco à minha frente me dava vertigens. Precisei de alguns minutos para me acostumar. E de mais uns outros para perceber que carcaça do aeliocóptero era composta por milhões de placas de metal de cores diversas e tinha mais ou menos o formato de um submarino, mais ou menos o formato de um helicóptero e mais ou menos o formato de um hipopótamo. Sobre rodinhas de patins. Muitas rodinhas de patins. Dei uma volta no campinho para ver minha descoberta por todos os ângulos. Havia uma hélice atrás. Imensa, como todo o resto. Mas não achei nenhuma porta...
   Bastou-me fazer essa constatação para que se abrisse lá em cima uma escotilha. A questão agora era como chegar lá e eu demorei alguns minutos para perceber a escada de barras de ferro amarelas bem à minha frente.
   Largando minha mochila, comecei a subir. Era estranho como toda a estrutura parecia ranger a cada movimento meu, mas talvez fosse só impressão. Mais rápido do que me parecia possível, terminei a minha escalada, encontrando-me, assim, num enorme plano de placas metálicas coloridas, com uma hélice no meio, muitos metros a cima do chão. Eu preferia não pensar nisso. Fui direto até a escotilha aberta e entrei, sem pensar duas vezes. De lá de dentro do aeliocóptero, uma voz roufenha me convidou a descer pelo cano que ficava bem no meio do tubo metálico e ia até sabe-se lá onde. De olhos fechados, me agarrei ao cano e escorreguei, escorreguei, escorreguei e continuei escorregando.
   Num certo momento, abri os olhos e percebi, com grande surpresa e certo alívio, que já poderia pular para o chão, que era feito de placas de metal prateado e polido que estalavam com meus passos.
   – Ora, boas vindas, jovem! Você chegou bem a tempo, estávamos apenas esperando você para partir. Um aeliocóptero como esse precisa de tripulantes, você compreende – a figura que me disse isso era o mais condizente impossível com a voz que tinha. O velho usava um uniforme azul marinho pomposo e de aparência muitíssimo oficial. Poderia ser da marinha de algum lugar. Ou da aeronáutica. Ou do exército. Não dava para ter certeza. E sob seu chapéu seus cabelos pareciam feitos de algodão. Nada arrumados. Seus óculos eram tão fundos, mas tão fundos que seus olhos não passavam de dois diminutos borrões escuros.
   Aquele era o Capitão, e isso ficou evidente desde o primeiro instante. E logo ele me mostrou a Sala dos Botões, de onde se controlava o aeliocóptero e onde eu o ajudaria a fazer milhões de coisas. Mas primeiro eu tinha que saber como aquela sala funcionava, o que não era nada simples. O nome não era desmerecido, havia botões por todos os lados, e acho que nem o Capitão sabia para o que serviam eles todos. Não demorei muito para perceber que o aeliocóptero poderia ir para qualquer lugar, ele podia ir por terra, água, ou ar, e suspeito que aguentasse uma viagem no espaço. Era um veículo veloz e resistente, que, segundo o Capitão, sempre existira, bem como ele mesmo.
   Na sala dos botões havia uma janela imensa, que eu não vira pelo lado de fora, por ela eu só via o céu, agora. Nos primeiros dias, não vi nenhuma outra janela no aeliocóptero. Na verdade, não cheguei a explorar o aeliocóptero inteiro, fiquei apenas na sala onde eu chegara e na Sala dos Botões. E também num quartinho que eu achara, que devia ser uma espécie de armário de vassouras fora de uso. O Capitão me deu um colchonete, uns cobertores e uma almofada, para que eu me instalasse melhor no meu quartinho. Não sei de onde ele os tirou.
   Na verdade, não explorei melhor o aeliocóptero por não achar portas que levassem a algum lugar que não meu quartinho ou a Sala dos Botões, e dessas achei várias. Achei inclusive uma porta que levava ao tubo pelo qual eu entrara. Não sei também de onde vinha a comida, que normalmente aparecia no meu quartinho a intervalos irregulares. Nem sei para onde ia o Capitão quando ele sumia, o que acontecia com frequência, mas durante períodos curtos de tempo. Aliás, o Capitão não parecia dormir ou comer, nem se dar conta de que só havíamos nós dois naquele aeliocóptero imenso, não raro referia-se à sua tripulação como se extensa.
  – Mas cadê essa tripulação, Capitão? Nunca vi ninguém por aqui! – perguntei certa vez quando já devia fazer uma semana que eu estava no aeliocóptero.
  – Ora, eles vão chegar, eles vão chegar. Você não chegou? Eles chegarão como você, basta que continuemos nossa viagem...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Primeiríssimo e inaugural ou Entre Parênteses

   Eu tinha uma ideia. Juro que tinha. Mas ela fugiu.
   É interessante como as ideias têm vida própria. Elas nascem, crescem, se desenvolvem, por vezes se reproduzem, às vezes morrem. Mas o mais curioso mesmo é que elas têm vontade própria. E, assim sendo, eventualmente fogem. Principalmente as jovens e adolescentes (a ideia em questão era uma jovem reacionária). Algumas voltam um dia, famintas, mirradas, carentes, essas voltam quando estamos quase dormindo. Outras voltam impetuosas, diferentes, amadurecidas, maiores em todos os sentidos. Essas voltam quando bem entendem. Se entendem.
   Na falta de uma ideia (de uma boa ideia, visto que ideias não me faltam), começo com uma explicação.
   A palavra aeliocóptero surgiu na boca de um amigo meu que ia dizendo helicóptero. Estávamos numa excursão escolar um tanto quanto tediosa e na falta do mais que fazer, comecei a imaginar o maravilhoso mecanismo digno de tão fabuloso nome. Uma máquina capaz de fazer qualquer viagem imaginável e mais além, não importa para onde, não importa a tripulação. Algo como uma mistura do Yellow Submarine dos Beatles com um helicóptero, na aparência. Não parece sensacional?
   Nada mais a declarar. Por hora.