quinta-feira, 4 de novembro de 2010

As Viagens do Aeliocóptero (pte 4.1) ou Ainda na Cozinha ou Aldo


Quando, de repente, uma figura de uma azul elétrico pálido e perolado entrou por uma porta que eu ainda não percebera carregando um gato muito laranja. O estrondo causado pela abertura da porta chamou a atenção do Cozinheiro, que ainda não nos vira.

– Musti! Aldo, você encontrrrar Musti! Obrrigado! – exclamou, ao apanhar o gato – que era muito gordo.
Agora, sem o peso do gato, Aldo subiu alguns centímetros no ar e percebi que ele flutuava, apesar de ter o formato e o tamanho de um homem franzino.
– Aldo é um fantasma – sussurrou Alice ao meu ouvido – Não que ele goste de ser lembrado disso.
O longo e azul nariz de Aldo franziu-se erguido no ar numa expressão digníssima.
– Encontrei-o na minha Biblioteca. Novamente. A situação vem se tornando insustentável, Cozinheiro. Sei que o Capitão permitiu Mustafá no Aeliocóptero e que agora não há mais nada que se possa fazer, visto que ele foi incorporado, mas a Biblioteca não é lugar para um gato. – disse, severamente.
– Orrra, Aldo, fique feliz porrr ela não estarr perrdido naquela sua Labirrrinta maluca. – retrucou o Cozinheiro fazendo festinhas no gato que pareciam deprimir o fantasma, que suspirava.
– Mustafá não se perderia num labirinto controlado por mim. Muito menos no meu Labirinto. – disse, revirando os olhos.
Foi quando deu pela nossa presença. Seus olhos contraíram-se em duas fendas azuis e ele pigarreou.
– Crianças. – murmurou para o Cozinheiro.
– Eh? Ah! CRRRIANÇAS! Vocês não deviam estarrr no cama? Dorrmindo? – ele parecia bastante surpreso em nos ver alí.
– Nós não estávamos conseguindo dormir... – disse Alice, com voz inocente, os olhos lampejando do chão para o Cozinheiro, doces e ingênuos, as mãos unidas à frente do corpo.
– Pobrres crrianças! Imagino que devem estarrr com fome. A fome atrrapalha a sono, vocês sabem... Mas vamos, sentem-se vou prrreparrrar algo parra vocês minhas crrrianças. – disse, puxando duas cadeiras de algum lugar e abrindo espaço na mesa para nós. Então começou a caçar ingredientes para nos preparar um mingau, ou foi o que eu imaginei.
Ele abria armário após armário e gaveta após gaveta numa parede que de repente pareceu impossivelmente grande na Cozinha pequena, tirando maços de ervas e sacos de temperos e farinhas e ingredientes e condimentos mais potes e potes cheios de coisas que eu não poderia dizer o que eram catalogados com etiquetas escritas à mão pelo próprio Cozinheiro em alguma língua há muito esquecida.

– Animalzinho impossível. – disse Aldo, pegando Mustafá, que se preparava para pular para dentro de um armário, pelo cangote – Esse gato deveria se chamar Barbrama. Mustafá...
– Barbrama? Como assim? ­– perguntei, atraíndo os olhares ameaçadoramente brilhante de Alice e azulada e dignamente provocado de Aldo.
– Sim, Barbrama – ele respondeu, ainda com ar de ofensa, como se a existência do gato fosse uma afronta do pior nível – Gato barbramento, só arranja confusão. Barbrama.
Eu pretendia perguntar mais alguma coisa, mas Alice me atingiu com um pontapé na canela por sob a mesa, desencorajando-me. Agora o Cozinheiro, que já empilhara todos os seus ingredientes na ponta da mesa e voltara a cantarolar a canção da caçarola procurava uma colher entre todos os instrumentos brilhantes pendurados em outra parede. Logo ele voltou-se novamente para nós, com um gigantesco caldeirão tilintante nas mãos gorduchas.
– Orrra, Aldo, minha carro, parre de atorrrmentarrr Musti. Ele já deve estarr bastante trraumatizada. – disse, sem olhar, tirando do caldeirão uma panelinha e apanhando uma faca com a qual se pôs a cortar um maço de folhas que liberou um cheiro apetitoso e curiosamente esverdeado que inundou a cozinha, aumentando nossa fome.
Estranho como os cheiros se espalhavam pela Cozinha, todos absurdamente coloridos, as panelas penduradas rebrilhando e tilintando alegremente em enlouquecida aprovação. Até Aldo, cujo nariz azul parecia constantemente franzido, parecia mais leve e interessado na atividade do Cozinheiro.
–Talvez uma folhinha deste aqui, não? – sugeriu, rodando um maço do que me pareciam muitos trevos minúsculos e azuis entre os dedos finos e igualmente azuis.
– AHÁ! Clarro, Aldo, grrande ideia, serr prrecisamente o que eu estava prrocurrando. – respondeu o Cozinheiro, satisfeitíssimo, cantarolando cada vez mais alto e rápido a canção da caçarola.
– Mas como o Aldo sabia? Aldo, você come? – perguntei, a perplexidade tangível na voz, ganhando mais um pontapé dolorido de Alice, que me encarava enfurecida.
– Idiota. – seus lábios desenharam a palavra, sem soltar som algum.
– Evidente que não! Criança tola e suas perguntas imbecilóides! – Aldo parecera aumentar de tamanho, bufante, uma fumacinha azulada saindo de suas orelhas, a voz assustadoramente gutural – Alguém devia instaurar um toque de recolher nesse bendito Aeliocóptero, o lugar está absolutamente fora de ordem!... Perdeu a noção do perigo!
– Aldo, acalme-se homem! Por Júpiter! O que está acontecendo aqui? Céus, vocês me acordaram! – disse o Capitão ao entrar pela portinha semi-escondida na parede dos armários – Ora, ainda nem bem amanheceu e você já está cozinhando?
– Mas clarro! Crrianças na Cozinha e você querr que eu fique parrado? Me passe aquele colherr, porr favorr. Obrrigada. Agorra, Aldo encontrrou Musti!
– Pelo menos ele não foi parar na fornalha, aquele Carlito não é confiável. – disse Aldo, fungando, já recomposto.
Eu pretendia perguntar quem era Carlito, mas de repente o Cozinheiro colocou um prato cheio de um mingau rosado, cheiroso e suculento na minha frente e na de Alice e nós não fomos capazes de pensar em mais nada além de traçar aquele prato. E depois, aquecidos e de barriga cheia, nos vimos de volta na cama.

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