sexta-feira, 22 de outubro de 2010

As Viagens do Aeliocóptero (pte 4) ou Na Cozinha

Sem conseguir dormir, revirava-me na cama. Os raios prateados de luar que invadiam o quarto pela janela aberta conferiam a tudo uma curiosa coloração azulada. Virei-me novamente e qual não foi minha surpresa ao deparar-me com  Alice ajoelhada ao lado da minha cama fitando-me com aqueles olhos imensos.
– Estou com fome – constatou – Imagino que você saiba me dizer onde é a cozinha.
– Desculpe... Eu não... Ainda... – murmurei, de forma confusa - Trabalhando nisso.
Ela suspirou, revirando os olhos.
– Quer vir comigo? Procurar, digo.
Balbuciei mais qualquer coisa afirmativamente e pulei da cama, procurando algo para calçar.
– Ora, deixe disso. Vamos.
E fomos com os pés descalços mesmo. Voltamos a todos os cômodos que eu já conhecia, incluindo as Caldeiras e a Biblioteca, é claro, sempre procurando passagens e entradas que pudessem ter passado despercebidas.
Sempre tomando o cuidado de não fazer barulho para não acordar ninguém – ainda que eu duvidasse que alguém fosse nos ouvir, por mais barulho que fizéssemos – voltamos à saleta antes da Sala dos Botões e jogamo-nos no sofá, desanimados.
– Droga. Certeza que você não esqueceu nada? – perguntou, ligeiramente decepcionada.
– Absoluta. – respondi, encarando meus pés descalços.
Alice fitava o teto de placas de metal pensativamente.
– Mas é claro! O tubo de entrada! Parece que a memória de alguém não anda muito bem, não é mesmo? – disse, os olhos zombeteiros pousados em mim. Percebi que minhas bochechas avermelhavam-se. Eu realmente esquecera o tubo de entrada.
–É inútil, as paredes dele são totalmente lisas e sem entradas. – garanti, ainda ruborizando.
– Você por acaso já procurou lá?
Gesticulei negativamente em resposta.
– Ma...
– Não temos nada a perder, ora, vamos. Já procuramos em todos os outros lugares possíveis, só pode estar lá!
– Você não entende, aqui as coisas são diferentes, estão lá, mas só aparecem quando querem. Se a cozinha não quiser ser encontrada nós só estaremos perdendo tempo. – disse, em minha defesa.
– Ótimo, então você propõe que fiquemos esperando até que a cozinha caia no nosso colo? Não, obrigada. Eu sei como funcionam as coisas aqui e basta procurar no lugar certo. Estou indo. Você decide se vem comigo ou se volta a dormir.
Ela já começava a subir a escadinha de barras amarelas de metal que levava pelo tubo e começava a sumir de vista quando fui atrás.
Já começávamos a desanimar e cogitar retorno quando Alice soltou uma exclamação satisfeita e, com a leveza de um gato, atravessou o tubo num salto. A despeito de que houvesse algo em que se segurar apenas de um lado do tubo – lado do qual ela acabara de saltar – ela permaneceu onde pousou, como se parada no ar.
– Aqui, achei – disse, satisfeita – Não sei onde vai dar, mas é outro túnel e por este a gente pode engatinhar, Você vem?
Ela me encarava com uma sobrancelha erguida em desafio, então subi um pouco mais da escada e joguei-me na barra que usávamos para descer, o que me fez deslizar um pouco para baixo. Busquei um jeito desajeitado de passar da barra para o túnel, mas acabei precisando da ajuda de Alice, que pareceu muito feliz em caçoar de mim enquanto engatinhávamos no túnel.
Logo as brincadeiras perderam a graça e nós prosseguimos em silêncio por mais um longo trecho, sempre procurando entradas ocultas no túnel estreito.
– Ahá!  – exaclamei, assustando até a mim, depois do longo silêncio – Aqui, – disse, apontando uma entrada lateral que acabava em algum lugar de azulejos brancos, pelo que eu podia ver.
Mais perto, agora, ouvíamos a voz do cozinheiro numa empolgada canção sobre caçarolas em alguma língua desconhecida. Uma vez no fim do túnel, saltei para o chão, pousando com um baque suave, finalmente na cozinha. A Cozinha, diferentemente dos outros cômodos que eu  já encontrara, era bastante pequena. A mesa de madeira clara, coverta de livros e temperos, no centro, ocupava quase todo o espaço e a pia de tampo de mármore ocupava toda uma parede. Havia uma parede coberta de armários e gavetas e outra com milhares de aparatos pendurados. Outra parede era ocupada por algo que parecia uma grande lareira com um forno embaixo que provavelmente servia de fogão.  Alice pousou silenciosamente ao meu lado e nos encaramos sem saber muito bem o que fazer. O brilho nos olhos dela me indicava que ela tinha uma ideia.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

As Viagens do Aeliocóptero (pte 3) ou Alice

             Acordei com um baque suave. Vi pela minha janela que o dia ainda não amanhecera completamente, o céu clareava lentamente na manhã de aparência gélida. Escorreguei na barra para a Sala dos Botões, onde encontrei o Capitão e o Cozinheiro numa complicada operação de pouso.
– Maravilhoso, maravilhoso! Venha cá, pegue seu café da manhã e nos ajude – disse o Capitão, muitíssimo atrapalhado, mordiscando uma torrada com geléia enquanto puxava três alavancas – uma delas com o pé.
– Tome aqui, crrriança. Coma, coma. E desça nas caldeirrras – disse o Cozinheiro, alegremente, me empurrando um prato com bolinhos e torradas enquanto apertava uma série de botões coloridos e piscantes repetidas vezes.
– Cald...
– Sim, sim, desça – o Capitão me interrompeu, gesticulando com o queixo para um alçapão aberto ao seu lado.
Desci, ainda mastigando meu bolinho. Eu poderia ter entrado num forno. Tudo lá embaixo era em tons alaranjados e amarronzados, tudo fervia e se movimentava, tudo era vivo. Era como se eu estivesse no coração do Aeliocóptero, grandes tubos pulsantes levando a água fervente de um lado para o outro.
– Não fique aí sem fazer nada! Alimente o fogo! – gritou o Capitão lá de cima – Use a pá para jogar o carvão!
Olhei para os lados procurando a pá – e o carvão – mesmo sem saber o que faria quando encontrasse. Achei-a fincada numa enorme montanha de carvão sob um emaranhado de engrenagens ruidosas. Escalei o carvão para pegar a pá e, uma vez lá em cima, pude ver a imensa fornalha que a pilha de carvão escondia, algumas labaredas lambendo a abertura como línguas de uma monstruosa boca.
Escorreguei pela pilha de carvão. Curiosamente eu não sentia mais calor aqui, na frente da fornalha, do que antes, mesmo que agora estivesse a poucos centímetros do que eu acreditava ser a maior fonte de calor que já vira. E comecei a jogar pá atrás de pá de carvão dentro daquela boca colossal, as línguas-labaredas lambendo os lábios, gulosas.
Um baque muito maior que o anterior – e esse me fez cair para trás – seguido de um chamado do Capitão, me informou que nós finalmente pousáramos. Subi de volta para a Sala dos Botões por uma escada de cordas que eu poderia jurar que não estava ali antes e dei de cara com o Cozinheiro e o Capitão jogados no chão, exauridos.
– Muito bem, realmente ótimo – arfou o Capitão gesticulando para o chão – Sente-se aí e descanse um pouco conosco. Nós merecemos.
– A melhorrr pousa de que eu já parrrticipei – assentiu o Cozinheiro com uma cara satisfeita, e me ocorreu que eu não gostaria de ter participado do pior pouso.
Após um curto descanso, enviaram-me para explorar o lugar onde havíamos pousado. Era a primeira vez em um longo tempo que eu saia do Aeliocóptero, pensei com um arrepio ao escalar a escadinha que eu encontrei no tubo por onde escorregara para entrar. De cima do Aeliocóptero a vista era incrível, nós pousáramos em uma enorme cadeia de montanhas de picos nevados e enevoados, além dos quais se via, lá embaixo, uma densa floresta, iluminada pelos primeiros raios dourados de sol. Desci pela escadinha de barras amarelas até que a altura fosse suficientemente baixa para que eu pudesse saltar para a relva salpicada de neve.
Inspirei profundamente, olhando ao redor e me assustei ao perceber que o Capitão e o Cozinheiro estavam abaixados a alguns metros, estudando alguma coisa.
– E aí você fica pensando, como será que eles vieram parar aqui fora – disse uma voz baixa e feminina ao meu lado, assustando-me novamente. Num pulo, virei para encarar a figura que me falara.
– Te assustei? – perguntou a garota, os olhos brilhando, divertidos – Pois não se assuste. Alice. – disse, estendendo a mão muito clara para mim, num cumprimento formal. Apertei a mão que ela me estendera, ainda me recuperando do susto.
Ela examinou atentamente a própria mão, e então correu os olhos por mim, dos pés à cabeça.
– Interessante seu penteado... – disse, uma sobrancelha longa e firme erguida, fazendo-me lembrar que escorregar naquela pilha de carvão provavelmente me sujara a mais não poder e meu cabelo devia estar um caos à parte. Passei uma mão no cabelo, tentando arrumar um pouco, fazendo-a rir e corando loucamente.
– Alice! Eu realmente esperava encontrá-la por aqui, minha cara – disse o Capitão, sorridente, voltando-se para nós – Você deveria tomar um banho, jovem – acrescentou, olhando para mim, as mãos na cintura, o que arrancou um sorrisinho de Alice.
– O que o Cozinheiro está procurando? – perguntei, esperando que o carvão no meu rosto disfarçasse o rubor que eu tinha certeza que subira às minhas bochechas.
– Ervas – suspirou o Capitão – Procurando ervas... mas vocês podem ir entrando, se quiserem... Você realmente precisa de um banho. Vamos ficar aqui algum tempo, então vocês terão tempo de explorar depois, se quiserem, ainda que eu ache que Alice já ficou aqui tempo o bastante, não?
Voltando para o meu quarto, tomei um bom banho, um bom e longo banho, que me reinstaurou a cor original. Então, não encontrando ninguém pelo Aeliocóptero, tornei a sair e foi com alguma surpresa que eu percebi que o Sol se erguera no céu, conferindo à névoa uma coloração amanteigada.
Os meus três companheiros de viagem estavam reunidos em volta de uma mesa de madeira grande e muito bem guarnecida de pratos apetitosos. Sentei-me em uma das muitas cadeiras vazias em volta da mesa, a minha perto do Cozinheiro, que servia feliz prato do Capitão, à ponta da mesa, enquanto Alice, à esquerda do capitão e, por tanto, à minha frente, se servia de uma tortinha de morango. O Capitão, como tantas vezes, contava a história de uma de suas aventuras. Estranhamente, eu tinha a nítida sensação que eu era a única pessoa que ainda não conhecia aquela história e então me ocorreu que o Capitão soubera o nome de Alice antes mesmo de ela se apresentar. Como se eles já se conhecessem.
Agora o Aeliocóptero seguia viagem com quatro tripulantes, ou assim eu imaginava.