Acordei com um baque suave. Vi pela minha janela que o dia ainda não amanhecera completamente, o céu clareava lentamente na manhã de aparência gélida. Escorreguei na barra para a Sala dos Botões, onde encontrei o Capitão e o Cozinheiro numa complicada operação de pouso.
– Maravilhoso, maravilhoso! Venha cá, pegue seu café da manhã e nos ajude – disse o Capitão, muitíssimo atrapalhado, mordiscando uma torrada com geléia enquanto puxava três alavancas – uma delas com o pé.
– Tome aqui, crrriança. Coma, coma. E desça nas caldeirrras – disse o Cozinheiro, alegremente, me empurrando um prato com bolinhos e torradas enquanto apertava uma série de botões coloridos e piscantes repetidas vezes.
– Cald...
– Sim, sim, desça – o Capitão me interrompeu, gesticulando com o queixo para um alçapão aberto ao seu lado.
Desci, ainda mastigando meu bolinho. Eu poderia ter entrado num forno. Tudo lá embaixo era em tons alaranjados e amarronzados, tudo fervia e se movimentava, tudo era vivo. Era como se eu estivesse no coração do Aeliocóptero, grandes tubos pulsantes levando a água fervente de um lado para o outro.
– Não fique aí sem fazer nada! Alimente o fogo! – gritou o Capitão lá de cima – Use a pá para jogar o carvão!
Olhei para os lados procurando a pá – e o carvão – mesmo sem saber o que faria quando encontrasse. Achei-a fincada numa enorme montanha de carvão sob um emaranhado de engrenagens ruidosas. Escalei o carvão para pegar a pá e, uma vez lá em cima, pude ver a imensa fornalha que a pilha de carvão escondia, algumas labaredas lambendo a abertura como línguas de uma monstruosa boca.
Escorreguei pela pilha de carvão. Curiosamente eu não sentia mais calor aqui, na frente da fornalha, do que antes, mesmo que agora estivesse a poucos centímetros do que eu acreditava ser a maior fonte de calor que já vira. E comecei a jogar pá atrás de pá de carvão dentro daquela boca colossal, as línguas-labaredas lambendo os lábios, gulosas.
Um baque muito maior que o anterior – e esse me fez cair para trás – seguido de um chamado do Capitão, me informou que nós finalmente pousáramos. Subi de volta para a Sala dos Botões por uma escada de cordas que eu poderia jurar que não estava ali antes e dei de cara com o Cozinheiro e o Capitão jogados no chão, exauridos.
– Muito bem, realmente ótimo – arfou o Capitão gesticulando para o chão – Sente-se aí e descanse um pouco conosco. Nós merecemos.
– A melhorrr pousa de que eu já parrrticipei – assentiu o Cozinheiro com uma cara satisfeita, e me ocorreu que eu não gostaria de ter participado do pior pouso.
Após um curto descanso, enviaram-me para explorar o lugar onde havíamos pousado. Era a primeira vez em um longo tempo que eu saia do Aeliocóptero, pensei com um arrepio ao escalar a escadinha que eu encontrei no tubo por onde escorregara para entrar. De cima do Aeliocóptero a vista era incrível, nós pousáramos em uma enorme cadeia de montanhas de picos nevados e enevoados, além dos quais se via, lá embaixo, uma densa floresta, iluminada pelos primeiros raios dourados de sol. Desci pela escadinha de barras amarelas até que a altura fosse suficientemente baixa para que eu pudesse saltar para a relva salpicada de neve.
Inspirei profundamente, olhando ao redor e me assustei ao perceber que o Capitão e o Cozinheiro estavam abaixados a alguns metros, estudando alguma coisa.
– E aí você fica pensando, como será que eles vieram parar aqui fora – disse uma voz baixa e feminina ao meu lado, assustando-me novamente. Num pulo, virei para encarar a figura que me falara.
– Te assustei? – perguntou a garota, os olhos brilhando, divertidos – Pois não se assuste. Alice. – disse, estendendo a mão muito clara para mim, num cumprimento formal. Apertei a mão que ela me estendera, ainda me recuperando do susto.
Ela examinou atentamente a própria mão, e então correu os olhos por mim, dos pés à cabeça.
– Interessante seu penteado... – disse, uma sobrancelha longa e firme erguida, fazendo-me lembrar que escorregar naquela pilha de carvão provavelmente me sujara a mais não poder e meu cabelo devia estar um caos à parte. Passei uma mão no cabelo, tentando arrumar um pouco, fazendo-a rir e corando loucamente.
– Alice! Eu realmente esperava encontrá-la por aqui, minha cara – disse o Capitão, sorridente, voltando-se para nós – Você deveria tomar um banho, jovem – acrescentou, olhando para mim, as mãos na cintura, o que arrancou um sorrisinho de Alice.
– O que o Cozinheiro está procurando? – perguntei, esperando que o carvão no meu rosto disfarçasse o rubor que eu tinha certeza que subira às minhas bochechas.
– Ervas – suspirou o Capitão – Procurando ervas... mas vocês podem ir entrando, se quiserem... Você realmente precisa de um banho. Vamos ficar aqui algum tempo, então vocês terão tempo de explorar depois, se quiserem, ainda que eu ache que Alice já ficou aqui tempo o bastante, não?
Voltando para o meu quarto, tomei um bom banho, um bom e longo banho, que me reinstaurou a cor original. Então, não encontrando ninguém pelo Aeliocóptero, tornei a sair e foi com alguma surpresa que eu percebi que o Sol se erguera no céu, conferindo à névoa uma coloração amanteigada.
Os meus três companheiros de viagem estavam reunidos em volta de uma mesa de madeira grande e muito bem guarnecida de pratos apetitosos. Sentei-me em uma das muitas cadeiras vazias em volta da mesa, a minha perto do Cozinheiro, que servia feliz prato do Capitão, à ponta da mesa, enquanto Alice, à esquerda do capitão e, por tanto, à minha frente, se servia de uma tortinha de morango. O Capitão, como tantas vezes, contava a história de uma de suas aventuras. Estranhamente, eu tinha a nítida sensação que eu era a única pessoa que ainda não conhecia aquela história e então me ocorreu que o Capitão soubera o nome de Alice antes mesmo de ela se apresentar. Como se eles já se conhecessem.
Agora o Aeliocóptero seguia viagem com quatro tripulantes, ou assim eu imaginava.
Nosssaa!!!!
ResponderExcluirMuito bom mesmo,a partir de hj,vou me inspirar em vc
Continue assim,seus textos sao maravilhosos!!!!
Muuuuito legal!
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