sábado, 31 de dezembro de 2011

As Viagens do Aeliocóptero (pte 9) ou O Ganso

– Alice – murmurei, cutucando-a. Era noite e todos dormiam no Aeliocóptero quando eu me esgueirei para o quarto de Alice pela passagem estreita que encontrei no meu próprio. Aquela devia ser a conexão entre nossos quartos que a permitira vir me acordar para procurar a cozinha.
– Alice – repeti, balançando seu braço. Ela resmungou, virando as costas para mim – Alice, acorda! – choraminguei.
– Que foi? – ela respondeu, grogue, erguendo um pouco a cabeça despenteada.
– Você sabe como a gente sai daqui? – perguntei e tenho certeza que meus olhos brilhavam de ansiedade.
– Pela porta – resmungou e já voltava a dormir quando eu a sacudi de novo.
– Alice, vamos, acorde! Quero sair do Aeliocóptero. Vamos nadar lá fora! Veja, aqui mesmo à noite não é escuro!
– Mas por que essa hora? Não dá para deixar para pedir ao Capitão de manhã? – murmurou, preguiçosa, esfregando os olhos.
– Ele não deixaria – murmurei, timidamente – Vamos! Eu sei que você vai gostar!
– Eu gostaria mesmo é de dormir mais um pouco... Mas vamos – disse, levantando-se.

Decidimos encaminhar-nos para a Sala dos Botões, onde esperávamos encontrar algum meio de sair sem precisar abrir a escotilha, o que poderia fazer com que a água caísse para dentro do Aeliocóptero, numa imensa cachoeira de água salgada que molharia tudo e todos, além de transformar o Aeliocóptero em apenas uma casca metálica cheia d’água no meio do mar – um ambiente inóspito para nós, respiradores de ar.
Não, a saída deveria ser pelo chão, assim a água não cairia no Aeliocóptero nem nosso ar cairia em lugar algum.
Procuramos uma alavanca ou botão que nos servisse por horas a fio e já estava quase perto de amanhecer quando desistimos. Alice sentou-se no chão encostada a uma parede, sonolenta, decepcionada, desacorçoada.
– Grande ideia. Que você pretende fazer agora?
– Não sei –, admiti, com imenso desanimo, sentando-me ao seu lado.
Assim que eu encostei minhas costas na parede, esta vibrou atrás de nós. Pulamos de susto e percebemos que cada placa metálica que compunha a parede se movia, com grande estrondo.
A parede ainda estaca no meio dessa movimentação quando Aldo apareceu, esbravejante:
– Mas que barulheira é essa? E qual o motivo da abertura da parede? Que significa isso tudo? – e eu poderia jurar que seus diáfanos cabelos azuis estavam desordenados. O bradar furioso de Aldo confundia-se com o barulho da parede, numa cacofonia quase organizada que cessou sem atravessar, quando a parede por fim encontrava-se aberta.
E a água estava parada lá fora, na mesma posição que estivera minutos antes, quando ainda havia uma parede entre nós e toda aquela imensidão que se estendia à nossa frente agora.
Alice virou-se para mim, os olhos brilhando loucamente, antes de correr para a água. Rapidamente, corri junto dela, deixando um Aldo quase vermelho de raiva para trás. Quando estávamos quase atravessando a cortina, espiei a Sala dos Botões com o rabo do olho e pude ver o Capitão e o Cozinheiro chegando, às pressas, para acudir Aldo.
Lá fora era ainda mais bonito do que parecia olhando pelas janelas. Era azul, era imenso, era brilhante. Era de todas as cores e se movia o tempo todo, era vivo. O Aeliocóptero estava aninhado em uma moita macia de alga alaranjada e reluzente e seu metal multicolorido parecia ainda mais vibrante do que parecera antes. E maior.
Tudo era enorme, era imenso. E ao mesmo tempo era minúsculo, insignificante no meio daquele azul infinito. Os peixes voavam na água acima da minha cabeça, havia grandes arbustos coloridos por toda parte, onde certamente escondiam-se feras perigosas, adormecidas depois de um bom lanche. Alice e eu caminhávamos e flutuávamos e nadávamos e voávamos. Aquilo não parecia nem vagamente incomum para ela, nada nunca parecia.
Havia uma fortaleza de corais coloridos, reluzentes e retorcidos ao longe, tão cheia de vida que parecia abandonada pelo tempo. Cercando essa fortaleza havia uma floresta densa e escura onde nada se movia além das folhas, que iam e vinham com o movimento da água.
Para meu espanto, era precisamente para lá que Alice nos estava conduzindo. Ao me dar conta, parei, sem nem ao menos perceber.
– Com medo? – Alice virou-se para mim com um meio sorriso malicioso, antes de disparar em direção à floresta. Não tive outra opção senão segui-la, não saberia mais encontrar o Aeliocóptero sem ela.
Logo me vi embrenhando-me na entre as folhas largas da floresta sombria enquanto tentava seguir Alice, que corria à minha frente, lépida como uma enguia, enroscando-se nas sombras quase sólidas que formavam um labirinto por todos os lados. Chegamos por fim a uma clareira esverdeada, brilhante e perfeitamente redonda, cujo chão era coberto por pedrinhas azuis muito polidas e ligeiramente cobertas de limo.
E ali no meio da clareira, brilhando com aquela estranha luz esmeralda, estava o maior e mais imensamente branco ganso que eu já vira. Ele virou seu longo pescoço para encarar-nos e eu tenho razoável certeza de que seu olhar era cheio de desdém e superioridade. Não durou muito, ele voltou a cabeça para debaixo da asa, na sua posição original.
– Ora vamos, deixe de ser mole, levante-se! – disse Alice, enérgica e ligeiramente irritada, como se falasse com alguém com quem tivesse certa intimidade. O Ganso simplesmente suspirou. – Molenga!
Alice aproximou-se com passos firmes e pôs-se a falar brava, na mesma língua em que o Cozinheiro cantava às vezes. Não faço ideia do que ela possa ter dito, o fato é que fez com que o Ganso levantasse, indignado, e começasse a segui-la, mal olhando para ela ou o chão.
O caminho de volta foi bastante mais fácil do que aquele que nos trouxera até a clareira, principalmente por que era muito mais fácil seguir o imenso e rebolante traseiro do ganso, que ia à minha frente. Não pude deixar de achar aquilo um tanto bizarro, aquele bicho tão desproporcionalmente grande, seguindo a menina que de repente parecia tão pequena, de braços cruzados.
Nosso curioso cortejo seguiu até o Aeliocóptero, que continuava com a parede aberta. Mais uma vez, o Cozinheiro saíra para suprir-se de qualquer coisa que cheirasse bem o bastante para servir de tempero. Ninguém se surpreendeu com a chegada de um ganso gigante, mas isso não era novidade para mim. Todos que chegavam ao Aeliocóptero pareciam ser esperados. Havia inclusive num canto uma almofada vermelha e imensa, toda cheia de bordados dourados, na qual o Ganso imediatamente instalou-se, com toda a sua pompa.
E lá ficou, pelos dias que se seguiram, olhando a tudo e a todos com distanciamento e descaso, suspirando esporadicamente.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

As Viagens do Aeliocóptero (pte 8) ou A Chegada de Levi

Acostumei-me de tal forma com o cantarolar de Sofia que passei a acreditar que a falta dele me faria mal. Passei a usá-lo para não me perder nas minhas peregrinações pelo Aeliocóptero, que ficavam cada vez mais ousadas.
Comecei por perscrutar toda a tubulação por onde eu e Alice chegáramos à cozinha. A tubulação acabava em uma sala cujas paredes eram inteiramente recobertas por espelhos de bordas douradas, de onde eu tive um pequeno problema para sair. Logo estava me enfiando em armários para encontrar passagens secretas, deslizando por baixo de camas atrás de alçapões e fazendo todo tipo de malabarismo que fosse necessário para descobrir mais e mais salas, mais e mais jardins.
– Sossegue, criança! Contenha-se – Aldo parecia bastante perturbado em me ver rondando por toda parte, coisa que fazia Carlito rir muito, espalhando fagulhas incandescentes por todo o chão.

Estávamos agora defronte ao mar. O Aeliocóptero parara alguns metros lá atrás, na areia branca que se estendia até a água. O cantarolar de Sofia seguia o ritmo das ondas que iam e vinham molhando nossos pés. Alice já estava nadando, ela fora a primeira a pedir para descer com o Cozinheiro, que estava num rochedo que fechava a praia, tornando-a uma linda baia. Cantando sua sempre animada canção, o Cozinheiro catava ostras verdes e outros petiscos esquisitos, com uma agilidade e rapidez inusitadas para o tamanho do seu corpo.
Voltamos ao Aeliocóptero que se pôs a andar. Carlito parecia enjoado, mal se equilibrava e o brilho dourado dos seus olhos e boca substituíra-se por um tom leitoso. O cheiro dos frutos do mar que o Cozinheiro carregava parecia fazê-lo piorar. Seguimos em linha reta pela areia, rumo ao mar, e Carlito piorava a cada metro.
– Bobagem! Frescura! Logo Carlito melhora, é sempre assim. – disse o Capitão, energicamente – Adiante!
O Aeliocóptero entrou na água com um ruído aquoso e passou a andar com mais lentidão e o ar cheirava à queima do gengibre ressecado com o qual Sofia e o Cozinheiro alimentavam Carlito.
– Você não vai querer perder a vista para ficar cuidando de uma velha salamandra moribunda, vai?– Carlito murmurou com um projeto de voz animada, ainda que roufenha, quando fiz menção de me ajoelhar ao seu lado – Vá olhar pela janela da Sala dos Botões, criança.
Peixes. Peixes de todas as cores, tamanhos e formatos passavam à minha frente, nadando no infinito imensamente azul que se estendia para todos os lados, envolvendo o Aeliocóptero num abraço irresistível. Íamos fundo, perto da areia clara e brilhante, roçando de leve nos arbustos de algas que passavam por baixo de nós e que foram aumentando à medida que nós íamos mais longe, até o ponto em que precisávamos desviar do que pareciam mais imensas árvores submarinas, tão cheias de peixes coloridos quanto as árvores em terra ficam cheias de pássaros.
Carlito logo melhorou, mas não restabeleceu completamente suas cores vibrantes de sempre. Curiosamente, debaixo d’água suas escamas adquiriam um brilho frio, que o tornavam um pouquinho assustador. Reforçamos seu abastecimento de carvão para que ele se mantivesse bem aquecido e seco e vez ou outra eu ia levar alguma coisa para ele comer nas Caldeiras. Sofia cantarolava e ele se balançava todo, em aprovação, Ernesto sentava-se ao seu lado com um cachimbo e contava histórias de lugares quentes que visitara recentemente. Bom, recentemente para eles, provavelmente uma quantidade de tempo que ninguém conhece.
Ainda que a água realmente o incomodasse, era visível que Carlito adorava ser paparicado – e quando não era, ameaçava adoecer de novo.
Um cardume de peixes de bigodes passava ao lado da minha janela quando acordei. Na verdade, aqui no fundo não era tão diferente da superfície. Nós voávamos na água e os pássaros que nos acompanhavam eram peixes. A maior diferença estava nas cores, que se organizavam de uma forma bastante inusitada. Estava no meio desses pensamentos quando ouvi Sofia. E dessa vez sua voz era ainda mais incrível, as notas dançavam ao meu redor e eu não pude fazer nada senão segui-las.
Quando dei por mim, estava me espremendo pela tubulação, rumo à Sala dos Espelhos, que refletia toda a luz do mundo e brilhava à minha frente. O som ficava cada vez mais próximo. Esgueirei-me até quase cair na sala, onde se encontrava Sofia.
Ela estava ali, bem no meio da sala, refletida por todos os espelhos. Talvez por isso a música soasse tão alta e incrível, talvez aquela quantidade de Sofias cantando tornasse a música mais forte. Sofia estendeu a mão para um dos espelhos e eu esperei que ela começasse a dançar. Mas não, quando a mão ia tocar o vidro, tocando a palma da mão refletida, não havia vidro, mas sim uma outra mão idêntica à que se estendera, que pegou a mão de Sofia. E Sofia abriu um largo sorriso e puxou a mão, que puxou um braço que puxou todo um garoto, idêntico e totalmente diferente de Sofia.
Levi cantava com Sofia na sua voz grave, mas clara e límpida, e os milhões de Sofias e Levis refletidos cantavam junto, tornando a música, agora completa, ainda mais inacreditável. Eles eram iguais, e ao mesmo tempo opostos. Levi era composto do mesmo material incolor de todas as cores de Sofia, seu sorriso era tão sincero e caloroso quanto o dela e todos os traços dos rostos dos dois eram iguais. Mas ao passo que Sofia era a feminilidade em forma física, Levi era a masculinidade em si.
– LEVI ESTÁ EM CASA! – ouvi Carlito gritar lá das Caldeiras e com sorrisos perfeitos e perfeitamente iguais os dois se viraram para mim.
– O-oi... – murmurei para Levi, que me estendeu a mão.
– Vamos, estou sentindo cheiro de festa.
Desci e nós passamos por um dos espelhos, indo dar numa sala cheia de almofadas e poltronas para todos os lados, onde todos surgiram de repente, cheios de abraços para dar, perguntas para fazer, saudades para expressar, beijos para distribuir, e comida para, evidentemente, comer. Todos, principalmente Sofia, queriam saber por onde Levi passara, como ele chegara no Aeliocóptero e o que ele andara fazendo. Quando ele se esquecia de alguma coisa, Sofia o lembrava. Levi também queria saber de todos, por onde haviam estado e como haviam chegado. Principalmente Sofia, ainda que me parecesse que essa história ele já conhecia.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

As Viagens do Aeliocóptero (pte 7) ou Sofia

Viajávamos por sobre as nuvens que, antes ameaçadoras, formavam agora um tapete branco e macio onde o Aeliocóptero deslizava mansamente. Vi Carlito mais algumas vezes, mas só quando ele me procurava – ele sempre sabia onde me achar e não importava onde estivesse sempre havia um lugar para o fogo.
Isso era uma coisa que eu ainda não percebera no Aeliocóptero. Absolutamente todas as salas, quartos e jardins tinham algum lugar destinado a Carlito. Fosse uma fogueira, uma lareira, um fogão ou mesmo um aquecedor – como era o caso da Sala dos Botões – sempre havia um lugar para onde ele poderia ir, levando seu fogo. Um lugar que não colocava o cômodo em perigo de incêndio e ao mesmo tempo oferecia uma boa visão de tudo. Carlito podia ir para onde bem entendesse.
Alice passava longas horas conversando com Carlito sobre tempos que ela não parecia ter idade para ter vivido, mas que faziam parte dela bem seus olhos imensos e o sorriso de cantos pontiagudos que eu aprendera a ver. Eles não se importavam com a minha presença e eu simplesmente adorava ouvir tantas histórias de tantos lugares e tempos tão diferentes, então passava longas horas assistindo as conversas dos dois. Foi, aliás, durante uma dessas conversas na Sala da Lareira que o Carlito me disse que saísse da sala e abrisse um alçapão que eu acharia no fim do corredor, à esquerda.
Abri, caindo num jardim interno que eu reconheci. Andando pela grama alta que balançava ao vento, avistei uma figura, ainda um tanto longe de mim. Corri até Ernesto, que olhava para o céu, o rosto erguido, as mãos sombreando os olhos.
– Eh, como você chegou aqui, jovem? – perguntou-me sem desviar os olhos do céu. Procurei o que ele encarava tão fixamente sem encontrar nada.
– Carlito. Tem um alçapão por onde se pode chegar aqui, não precisávamos ter trazido as cabras pelas escadas... – perscrutei o céu a procura de um pontinho que fosse, sem ver nada além da imensidão azul ao meu redor. – O que você está procurando?
– Sofia. A Branquinha me disse que ela vai chegar hoje, achei que seria educado vir recebê-la. Ela e o irmão sempre foram muito gentis com as meninas.
Branquinha devia ser uma das cabras, talvez a menor, e eu já ia perguntar quem eram Sofia e o irmão quando Ernesto continuou:
– Ali, acho que agora você já pode ver, criança – disse, envolvendo-me com um braço e apontando para o céu – Lá, vê? Um pontinho se aproximando de nós. É Sofia, com certeza. Agora é possível ver com clareza, antes poderia ser um pássaro...
Apertei bem os olhos, imaginando que tipo de criatura seria Sofia, que vinha pelo céu e não era um pássaro. Procurei o pontinho de que Ernesto falara, sem entender como ele via alguma coisa além do azul. Apertando os olhos um pouco mais eu vi um pontinho preto muito, muito distante.
E o pontinho se aproximou. E aumentou um pouco. E então um pouquinho mais. E mais um pouco. Agora era quase fácil vê-lo. Então ele se aproximou mais e mais e cada vez mais e mais rápido.
Até que eu vi que era um pontinho colorido com alguma coisa que parecia pendurada. E o pontinho se aproximou mais, tornando claro que era composto por vários pontinhos coloridos que carregavam algo – ou alguém – pendurado. Ernesto acenou sorridente para o pontinho, cuja parte pendurada pareceu retribuir o aceno, ainda se aproximando.
E foi se aproximando cada vez mais, até aterrissar na minha frente, na forma de uma menina muito clara, longilínea e sorridente que segurava, amarrada em cordinhas, uma infinidade de bexigas de borracha de todas as cores que se espalharam e encheram o céu quando Sofia as soltou, esticando as mãos para Ernesto.
– Ernesto! Olá! Bom estar de volta. Alguma notícia do meu irmão? – disse, numa voz cristalina, abraçando-o calorosamente, erguida nas pontas dos pés.
– Ainda não, minha querida. Mas tenho certeza que ele logo chega, vocês nunca estão muito distantes um do outro, sabe disso. – respondeu Ernesto com uma piscadela gentil.
– E você, quem é? – Sofia virou-se para mim, surpreendentemente leve e simpática, com um sorriso caloroso estampado no rosto. – Tripulação nova?
– É, eu ajudo o Capitão. – respondi com orgulho, estendendo minha mão e recebendo com grande surpresa um abraço forte.
Descemos a pequena colina onde estávamos em direção à escada que nos levaria ao interior do Aeliocóptero propriamente, Ernesto de braço dado com Sofia, que caminhava elegantemente, cantarolando, uma leveza expressa em todos os seus membros tão claros que quase eram transparentes. Era como se ela não tivesse cor alguma, como se todas as cores compusessem todo o seu corpo, sem carne, só cor. E tanta cor que nem cor não tinha.
Sofia era uma criatura agradável. Para todos, sem exceção. Carlito a adorava, Aldo lhe fazia gentilezas e Alice lhe sorrira franca e abertamente o sorriso mais incrível de todos. Mustafá roçava-lhe as pernas, o Cozinheiro preparou bolinhos sensacionais em sua homenagem e do Capitão nem se fala. Era fascinante vê-la se mover, ouvir seu cantarolar que se propagava pelo Aeliocóptero e era ouvido de todos os cantos, como um guia para quem a estivesse procurando.
Comecei a pensar se ela não estaria tentando chamar o irmão de alguma forma, pelo que todos diziam, ele devia fazer-lhe muita falta.
– Levi vai encontra-la sem que ela o chame, esqueça isso. Ela sente falta do irmão, por isso cantarola. Você vai entender quando ele chegar, não perca muito tempo tentando desmistificar Sofia, faça coisas mais produtivas, criança. Talvez algum dia você possa desentender menos, mas acredite, você nunca irá entende-la. Você tem algo que eu possa comer? – disse Carlito para mim um dia que nós estávamos sozinhos na Sala dos Botões. Joguei para ele um bloquinho de papéis que trazia no bolso.
– Aposto que você entende. – suspirei, enquanto ele comia avidamente o meu bloquinho. Eu precisaria de um novo – Ei! Como você sabia que eu estava pensando nisso? Não disse nada a ninguém!
– Não, eu não entendo. E é claro que eu sei, criança. Sei tudo o que acontece no Aeliocóptero, não se esqueça disso. E sei que Levi não está longe. Na verdade ele está bem perto.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

As Viagens do Aeliocóptero (pte 6) ou Carlito

No dia seguinte eu entendi a problemática de levar as cabras para o lugar onde elas deveriam ficar. O lugar era, na verdade, uma espécie de campo a céu aberto numa das partes mais altas do Aeliocóptero. Para chegar lá havia dois caminhos, um pela tubulação pela qual Alice e eu chegáramos à cozinha e outra por uma extensa escadaria que começava na Sala das Poltronas, no lado oposto ao da entrada da Biblioteca. Como as cabras não conseguiriam subir a escadinha na parede do tubo que dava acesso ao primeiro caminho (e também eu não acredito que elas pudessem se espremer pela tubulação), restava apenas o segundo caminho, e as cabras se recusavam a subir sozinhas as escadas, de forma que Alice e eu tivemos que carregar as duas maiores 573 degraus a cima, enquanto Ernesto levava a menor dentro do sobretudo e animadamente nos contava histórias antigas.
Permanecemos aos pés da Cordilheira por alguns dias, ainda que a chuva já tivesse parado. O Capitão dizia que era importante que o solo firmasse antes de prosseguirmos com a viagem. Até lá, Alice e eu passamos longas horas no Jardim das Cabras com o animado Ernesto, conversando e jogando. Ernesto era realmente muito bom com qualquer coisa que envolvesse baralho e já nos ensinara muitos jogos, truques e mágicas. Às vezes, o Capitão e o Cozinheiro se juntavam a nós para um piquenique, mas Aldo não gostava da ideia de expor-se ao Sol – diferente de Mustafá, que esparramava-se no gramado por horas, ronronante como um motor.

– AAAAAAAAAAAAACOOOORDAAAAR!
Pulei da cama ao ouvir a voz do Capitão reboar pelo meu quarto, como se ele estivesse lá dentro.
– AAAACORDAADOS TODOS! AGOOORA! – dessa vez sua voz foi acompanhada por um repicar metálico e estridente, ligeiramente preocupante.
Em um piscar, eu estava na Saleta, entre uma Alice bocejante e um Aldo de aspecto permanentemente mal-humorado – talvez um tanto pior que o normal. O Capitão gritava e batia tampas de panela (a fonte do ruído preocupante, o que me aliviou bastante), como se não desse pela nossa presença. O Cozinheiro surgiu por uma entrada lateral na parede que eu ainda não notara, esfregando as mãozinhas gorduchas no avental, seguido pelo rebolante Mustafá.
– Acalme-se, homem! O Sol ainda nem bem nasceu e você já está aos berros! Respire, eh? – disse Ernesto, esfregando os olhos ao chegar acompanhado pela menor das cabras.
– ACORDADOS! – assentiu o Capitão, com um aceno de cabeça – Vamos decolar, aos seus postos!
– Decolar? –perguntei – Mas eu achei que nós fôssemos...
– Voar! Vamos voar! Ora, é cada uma... Ernesto, para a Sala dos Botões, Alice, cheque as asas, Aldo... mantenha o Mustafá longe do nosso caminho. Cozinheiro, o café da manhã! – ordenou, apontando para cada um e todos encaminharam-se, Ernesto animado, Alice resmungando sonolenta, Aldo resignado com o feliz Mustafá no colo e o Cozinheiro apressado.
– VOCÊ! – exclamou o Capitão, virando-se para mim – Você vai acordar o Carlito. Para a Sala das Caldeiras!
– Carlito? Caldeiras?
– E onde mais você esperava encontrar uma salamandra? – resmungou Alice, sumindo pela escadinha.
A última vez que eu fora às caldeiras não vi nada que se assemelhasse ao que eu imaginava que fosse uma salamandra e agora não tinha nem ideia de por onde começar a procurar.
A Sala das Caldeiras era um lugar incrível. Cheia de canos e engrenagens e carvão e fornalhas por todos os lados, era pulsante e quente, era viva. Procurei por todos os cantos sem encontrar nada e já estava quase indo pedir ajuda ao Capitão quando em meio à ressoante sonoridade pulsante, reboante, estalante, crepitante, flamejante e deslizante característica da Sala das Caldeiras, percebi um ressonar estranho, vindo da boca de uma das fornalhas mais próximas, que chiava e espocava, estremecendo e cuspindo fagulhas.
Aproximei-me da boca de mil-línguas, agachando-me para poder espiar lá dentro da imensidão laranja. Em meio aos pedaços de carvão incandescente e brilhante e da intensa luz tremeluzente e calorosa, havia algo que parecia um corpo de um vermelho muito vivo. Não era possível dizer qual seria seu formato, seus contornos eram indetectáveis em meio ao carvão ardente, mas o corpo como que tinha uma pulsação própria, que coincidia com o ressonar que eu ouvira.
De tudo o que eu vira, aquilo era o que mais se assemelhava com um ser vivo, ainda que num ambiente muito hostil. Valia a tentativa. Agora era só descobrir como pegá-lo. Passei alguns minutos olhando para dentro da fornalha, pensando em como descobriria se aquilo era mesmo Carlito sem precisar enfiar a mão no fogo e já começava a sentir minhas pernas formigarem quando meu objeto de análise se moveu. Agora eu sabia que ele tinha uma cabeça e uma cauda, como um lagarto. Só que imenso, muito maior do que deveria ser para caber na fornalha onde dormia.
Mais algum tempo observando, agora com certo fascínio, percebi uma fileira de losangos dourados que ia da cabeça até a ponta da cauda pelas costas muito vermelhas. Percebi as quatro patas estendidas ao lado do corpo adormecido, que começavam vermelhas e iam clareando até serem muito brancas nas pontas dos dedos.
Estava aí quando percebi que os dedos começaram a se mexer. Como se estivessem tamborilando, moviam-se ritmicamente, todos juntos. E então as pernas enrijeceram, e eu pensei que o bicho fosse levantar, finalmente acordado. Mas ele simplesmente virou-se de barriga para cima e continuou dormindo.
– Ca-ham – pigarreei, tentando acordá-lo quando cansei de esperar, já não sentindo mais minhas pernas. O bicho estremelicou. Suspirando, tentei novamente:
– Ca-ham. Ãhn... Sr. Carlito? – sussurrei, não obtendo grande sucesso, além de alguns tremeliques – Sr. Carlito? Carlito? – tentei mais alto dessa vez. Mas ele no máximo se virava de um lado para o outro.
– CARLITO! – gritei, por fim, assustando-me com a minha própria voz. A salamandra assustou-se também, pondo-se de pé num salto. Então ele avançou para mim com tal ímpeto e velocidade que eu caí para trás (o que foi muito desconfortável para as minhas pernas dormentes).
– Que diabos... Ah! Uma criança! Outra criança! Que você veio fazer aqui, criança? – perguntou ele, agora na boca da fornalha, a cabeça projetada para fora, espiando-me com seus olhos amarelos imensos. Era incrível o quanto a boca dele se abria. Parecia que poderia englobar tudo o que quisesse.
– Oi. Vo-você é Carlito, a salamandra, não? O Capitão me mandou te acordar. Temos que decolar. Desculpe te acordar assim, de repente.
– Quem mais eu seria? Ora, crianças. Por que mandar crianças? Crianças nunca deveriam fazer o trabalho de um adulto. Crianças são remelentas. Não se ofenda. Vocês simplesmente são. – disse, com um sorriso condescendente.
– Seus olhos são esbugalhados. – respondi, calmamente.
– Sei disso. Obrigado. Cadê meu café da manhã? – perguntou, animado.
– Ah, desculpe, não trouxe nada para você... Aliás, que tipo de coisa que você come? – perguntei, com curiosidade autêntica. O que uma salamandra poderia comer?
– Qualquer coisa! Absolutamente qualquer coisa que possa queimar. E fumaça. Gosto de fumaça. Mas essa eu mesmo arranjo. Você não teria nada para mim aí? Deve ter carvão em algum lugar por aqui... ALIÁS! Não foi você que me alimentou um tempo atrás, criança? Na ocasião de uma aterrissagem? Foi a melhor aterrissagem que eu já fiz. Estou melhorando bastante nisso, nos últimos tempos, sabe? – Carlito tagarelava enquanto eu procurava algo com que pudesse alimentar a curiosa figura. Aproveitei para perguntar por que precisavam tanto dele para decolar e qual era sua função.
– Qual a minha função? QUAL A MINHA FUNÇÃO? – perguntou, com uma gargalhada, enquanto mastigava pedaços de carvão que eu atirava para ele – Eu faço esse treco aqui funcionar, criança. Eu aqueço a água do banho e produzo o fogo no qual o Cozinheiro cozinha. Eu mantenho o interior do Aeliocóptero quente e seco não importa onde ele esteja, eu acendo as lareiras nas manhãs geladas e esquento seu cobertor nas noites frias. Eu fervo a água que faz as engrenagens que estão por toda essa Sala e todas as outras se moverem e como a fumaça que é liberada no processo. Eu faço as asas do Aeliocóptero baterem, suas hélices girarem, suas rodas rodarem e tudo o mais. Eu animo o Aeliocóptero.
– E você não se cansa? E não se cansa de ficar aqui dentro, sempre no mesmo lugar? – perguntei, fascinando-me cada vez mais com Carlito, cujas escamas brilhantes refletiam todos os tons de laranja e dourado conforme ele se movia, empolgado explicando o que fazia.
– Na verdade eu posso ficar onde eu quiser no Aeliocóptero, contanto que seja no fogo. E posso ir para qualquer um dos fogos criados por mim quando bem entender. Como todos os fogos aqui são meus, posso ir para onde bem entender. Às vezes visito o Cozinheiro. Ou simplesmente passeio pelas lareiras. Mas gosto daqui, sabe? E sim, às vezes eu me canso. Principalmente se estivermos nos locomovendo por terra. E se estiver frio e ventando. E nós não pararmos por muito tempo. Voar é menos cansativo, e é deliciosa a sensação do vento correndo pelo meu corpo, avivando as labaredas. O que complica é pousar e decolar. Quando estamos nadando minha única função é acender lareiras e fogões e manter a temperatura interna do Aeliocóptero, então não é tão cansativo. Mas, argh, estamos cercados por água nadando. – concluiu, com um arrepio.
– O que você quis dizer quando falou da sensação do vento? Você pode sentir? Mas como, estando aqui dentro?
– Eu sinto tudo o que se passa por fora do Aeliocóptero, criança, como se ele fosse uma segunda pele. Sinto a grama sob os meus pés, sinto o vento pelo meu corpo e cinto a água me cercando. Água é realmente uma coisa nojenta.
– Você é uma criatura muito estranha. Gosto de você. – disse, surpreendendo-me por estar dizendo aquilo. De repente percebi que já devia ter passado muito tempo e que nós ainda não havíamos decolado – Ah, droga! Eu me esqueci! Vim te acordar para decolar, mas comecei a conversar e acabei esquecendo! O Capitão deve estar uma fera!
Carlito riu. Olhei para ele com descrença.
– Suba, criança. E olhe pela janela da Sala dos Botões. E volte para me visitar qualquer hora. De todas as crianças remelentas você é a mais suportável até agora.
Subi correndo tropegamente. Não vi ninguém na Saleta, o que me pareceu muito estranho. Então entrei na Sala dos Botões e dei de cara com a janela. E tudo o que se via por ela era uma imensidão azul. E mais abaixo um chão de nuvens.
Estávamos voando novamente.