segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

As Viagens do Aeliocóptero (pte 6) ou Carlito

No dia seguinte eu entendi a problemática de levar as cabras para o lugar onde elas deveriam ficar. O lugar era, na verdade, uma espécie de campo a céu aberto numa das partes mais altas do Aeliocóptero. Para chegar lá havia dois caminhos, um pela tubulação pela qual Alice e eu chegáramos à cozinha e outra por uma extensa escadaria que começava na Sala das Poltronas, no lado oposto ao da entrada da Biblioteca. Como as cabras não conseguiriam subir a escadinha na parede do tubo que dava acesso ao primeiro caminho (e também eu não acredito que elas pudessem se espremer pela tubulação), restava apenas o segundo caminho, e as cabras se recusavam a subir sozinhas as escadas, de forma que Alice e eu tivemos que carregar as duas maiores 573 degraus a cima, enquanto Ernesto levava a menor dentro do sobretudo e animadamente nos contava histórias antigas.
Permanecemos aos pés da Cordilheira por alguns dias, ainda que a chuva já tivesse parado. O Capitão dizia que era importante que o solo firmasse antes de prosseguirmos com a viagem. Até lá, Alice e eu passamos longas horas no Jardim das Cabras com o animado Ernesto, conversando e jogando. Ernesto era realmente muito bom com qualquer coisa que envolvesse baralho e já nos ensinara muitos jogos, truques e mágicas. Às vezes, o Capitão e o Cozinheiro se juntavam a nós para um piquenique, mas Aldo não gostava da ideia de expor-se ao Sol – diferente de Mustafá, que esparramava-se no gramado por horas, ronronante como um motor.

– AAAAAAAAAAAAACOOOORDAAAAR!
Pulei da cama ao ouvir a voz do Capitão reboar pelo meu quarto, como se ele estivesse lá dentro.
– AAAACORDAADOS TODOS! AGOOORA! – dessa vez sua voz foi acompanhada por um repicar metálico e estridente, ligeiramente preocupante.
Em um piscar, eu estava na Saleta, entre uma Alice bocejante e um Aldo de aspecto permanentemente mal-humorado – talvez um tanto pior que o normal. O Capitão gritava e batia tampas de panela (a fonte do ruído preocupante, o que me aliviou bastante), como se não desse pela nossa presença. O Cozinheiro surgiu por uma entrada lateral na parede que eu ainda não notara, esfregando as mãozinhas gorduchas no avental, seguido pelo rebolante Mustafá.
– Acalme-se, homem! O Sol ainda nem bem nasceu e você já está aos berros! Respire, eh? – disse Ernesto, esfregando os olhos ao chegar acompanhado pela menor das cabras.
– ACORDADOS! – assentiu o Capitão, com um aceno de cabeça – Vamos decolar, aos seus postos!
– Decolar? –perguntei – Mas eu achei que nós fôssemos...
– Voar! Vamos voar! Ora, é cada uma... Ernesto, para a Sala dos Botões, Alice, cheque as asas, Aldo... mantenha o Mustafá longe do nosso caminho. Cozinheiro, o café da manhã! – ordenou, apontando para cada um e todos encaminharam-se, Ernesto animado, Alice resmungando sonolenta, Aldo resignado com o feliz Mustafá no colo e o Cozinheiro apressado.
– VOCÊ! – exclamou o Capitão, virando-se para mim – Você vai acordar o Carlito. Para a Sala das Caldeiras!
– Carlito? Caldeiras?
– E onde mais você esperava encontrar uma salamandra? – resmungou Alice, sumindo pela escadinha.
A última vez que eu fora às caldeiras não vi nada que se assemelhasse ao que eu imaginava que fosse uma salamandra e agora não tinha nem ideia de por onde começar a procurar.
A Sala das Caldeiras era um lugar incrível. Cheia de canos e engrenagens e carvão e fornalhas por todos os lados, era pulsante e quente, era viva. Procurei por todos os cantos sem encontrar nada e já estava quase indo pedir ajuda ao Capitão quando em meio à ressoante sonoridade pulsante, reboante, estalante, crepitante, flamejante e deslizante característica da Sala das Caldeiras, percebi um ressonar estranho, vindo da boca de uma das fornalhas mais próximas, que chiava e espocava, estremecendo e cuspindo fagulhas.
Aproximei-me da boca de mil-línguas, agachando-me para poder espiar lá dentro da imensidão laranja. Em meio aos pedaços de carvão incandescente e brilhante e da intensa luz tremeluzente e calorosa, havia algo que parecia um corpo de um vermelho muito vivo. Não era possível dizer qual seria seu formato, seus contornos eram indetectáveis em meio ao carvão ardente, mas o corpo como que tinha uma pulsação própria, que coincidia com o ressonar que eu ouvira.
De tudo o que eu vira, aquilo era o que mais se assemelhava com um ser vivo, ainda que num ambiente muito hostil. Valia a tentativa. Agora era só descobrir como pegá-lo. Passei alguns minutos olhando para dentro da fornalha, pensando em como descobriria se aquilo era mesmo Carlito sem precisar enfiar a mão no fogo e já começava a sentir minhas pernas formigarem quando meu objeto de análise se moveu. Agora eu sabia que ele tinha uma cabeça e uma cauda, como um lagarto. Só que imenso, muito maior do que deveria ser para caber na fornalha onde dormia.
Mais algum tempo observando, agora com certo fascínio, percebi uma fileira de losangos dourados que ia da cabeça até a ponta da cauda pelas costas muito vermelhas. Percebi as quatro patas estendidas ao lado do corpo adormecido, que começavam vermelhas e iam clareando até serem muito brancas nas pontas dos dedos.
Estava aí quando percebi que os dedos começaram a se mexer. Como se estivessem tamborilando, moviam-se ritmicamente, todos juntos. E então as pernas enrijeceram, e eu pensei que o bicho fosse levantar, finalmente acordado. Mas ele simplesmente virou-se de barriga para cima e continuou dormindo.
– Ca-ham – pigarreei, tentando acordá-lo quando cansei de esperar, já não sentindo mais minhas pernas. O bicho estremelicou. Suspirando, tentei novamente:
– Ca-ham. Ãhn... Sr. Carlito? – sussurrei, não obtendo grande sucesso, além de alguns tremeliques – Sr. Carlito? Carlito? – tentei mais alto dessa vez. Mas ele no máximo se virava de um lado para o outro.
– CARLITO! – gritei, por fim, assustando-me com a minha própria voz. A salamandra assustou-se também, pondo-se de pé num salto. Então ele avançou para mim com tal ímpeto e velocidade que eu caí para trás (o que foi muito desconfortável para as minhas pernas dormentes).
– Que diabos... Ah! Uma criança! Outra criança! Que você veio fazer aqui, criança? – perguntou ele, agora na boca da fornalha, a cabeça projetada para fora, espiando-me com seus olhos amarelos imensos. Era incrível o quanto a boca dele se abria. Parecia que poderia englobar tudo o que quisesse.
– Oi. Vo-você é Carlito, a salamandra, não? O Capitão me mandou te acordar. Temos que decolar. Desculpe te acordar assim, de repente.
– Quem mais eu seria? Ora, crianças. Por que mandar crianças? Crianças nunca deveriam fazer o trabalho de um adulto. Crianças são remelentas. Não se ofenda. Vocês simplesmente são. – disse, com um sorriso condescendente.
– Seus olhos são esbugalhados. – respondi, calmamente.
– Sei disso. Obrigado. Cadê meu café da manhã? – perguntou, animado.
– Ah, desculpe, não trouxe nada para você... Aliás, que tipo de coisa que você come? – perguntei, com curiosidade autêntica. O que uma salamandra poderia comer?
– Qualquer coisa! Absolutamente qualquer coisa que possa queimar. E fumaça. Gosto de fumaça. Mas essa eu mesmo arranjo. Você não teria nada para mim aí? Deve ter carvão em algum lugar por aqui... ALIÁS! Não foi você que me alimentou um tempo atrás, criança? Na ocasião de uma aterrissagem? Foi a melhor aterrissagem que eu já fiz. Estou melhorando bastante nisso, nos últimos tempos, sabe? – Carlito tagarelava enquanto eu procurava algo com que pudesse alimentar a curiosa figura. Aproveitei para perguntar por que precisavam tanto dele para decolar e qual era sua função.
– Qual a minha função? QUAL A MINHA FUNÇÃO? – perguntou, com uma gargalhada, enquanto mastigava pedaços de carvão que eu atirava para ele – Eu faço esse treco aqui funcionar, criança. Eu aqueço a água do banho e produzo o fogo no qual o Cozinheiro cozinha. Eu mantenho o interior do Aeliocóptero quente e seco não importa onde ele esteja, eu acendo as lareiras nas manhãs geladas e esquento seu cobertor nas noites frias. Eu fervo a água que faz as engrenagens que estão por toda essa Sala e todas as outras se moverem e como a fumaça que é liberada no processo. Eu faço as asas do Aeliocóptero baterem, suas hélices girarem, suas rodas rodarem e tudo o mais. Eu animo o Aeliocóptero.
– E você não se cansa? E não se cansa de ficar aqui dentro, sempre no mesmo lugar? – perguntei, fascinando-me cada vez mais com Carlito, cujas escamas brilhantes refletiam todos os tons de laranja e dourado conforme ele se movia, empolgado explicando o que fazia.
– Na verdade eu posso ficar onde eu quiser no Aeliocóptero, contanto que seja no fogo. E posso ir para qualquer um dos fogos criados por mim quando bem entender. Como todos os fogos aqui são meus, posso ir para onde bem entender. Às vezes visito o Cozinheiro. Ou simplesmente passeio pelas lareiras. Mas gosto daqui, sabe? E sim, às vezes eu me canso. Principalmente se estivermos nos locomovendo por terra. E se estiver frio e ventando. E nós não pararmos por muito tempo. Voar é menos cansativo, e é deliciosa a sensação do vento correndo pelo meu corpo, avivando as labaredas. O que complica é pousar e decolar. Quando estamos nadando minha única função é acender lareiras e fogões e manter a temperatura interna do Aeliocóptero, então não é tão cansativo. Mas, argh, estamos cercados por água nadando. – concluiu, com um arrepio.
– O que você quis dizer quando falou da sensação do vento? Você pode sentir? Mas como, estando aqui dentro?
– Eu sinto tudo o que se passa por fora do Aeliocóptero, criança, como se ele fosse uma segunda pele. Sinto a grama sob os meus pés, sinto o vento pelo meu corpo e cinto a água me cercando. Água é realmente uma coisa nojenta.
– Você é uma criatura muito estranha. Gosto de você. – disse, surpreendendo-me por estar dizendo aquilo. De repente percebi que já devia ter passado muito tempo e que nós ainda não havíamos decolado – Ah, droga! Eu me esqueci! Vim te acordar para decolar, mas comecei a conversar e acabei esquecendo! O Capitão deve estar uma fera!
Carlito riu. Olhei para ele com descrença.
– Suba, criança. E olhe pela janela da Sala dos Botões. E volte para me visitar qualquer hora. De todas as crianças remelentas você é a mais suportável até agora.
Subi correndo tropegamente. Não vi ninguém na Saleta, o que me pareceu muito estranho. Então entrei na Sala dos Botões e dei de cara com a janela. E tudo o que se via por ela era uma imensidão azul. E mais abaixo um chão de nuvens.
Estávamos voando novamente.


Um comentário:

  1. Amei esse capítulo.... meu preferido até agora!
    Me identifiquei com o Carlito!

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